in loco - cobertura do Festival do Rio

Filmar, hoje, uma criança
por Eduardo Valente

Há algo de selvagem e indomável na imagem de uma criança na ficção audiovisual. Não por acaso, filmar com elas é sempre lembrado (junto com filmar com animais e filmar em condições meteorológicas adversas) como um dos grandes desafios da realização de filmes e teledramaturgias: nos três casos lida-se com algo que pode-se controlar e prever (palavras tão valiosas no processo de realização) apenas até certo ponto. A partir desta constatação, existem opções distintas, claro. Uma delas é a do abraço e exploração do que de melhor há nesta selvageria infantil, com os mais distintos fins: desde o documental em um Ser e Ter, passando pela infância transviada de um Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim, chegando ao lirismo de Ponette – todos eles filmes que só existem enquanto suas crianças nos surpreendem. No Festival, vimos a força desta opção nos papéis coadjuvantes, mas essenciais, dos filhos em O Céu de Suely ou As Leis de Família, por exemplo.

Já nas telenovelas globais recentes temos visto a multiplicação das, um tanto assustadoras, crianças-adultos: meninos e meninas que logo viram celebridades (com direito a todo o pacote que envolve isso, ou seja, entrevistas no Jô Soares e Faustão entre outras benesses), acima de tudo pela sua capacidade de “representarem” tão bem. E o que significa “representar”, neste contexto? Copiar os tiques dos adultos, claro: falar suas falas com um mesmo naturalismo televisivo, expressar as emoções que se espera nos momentos em que se espera – em suma, ser controlado e previsível como se deseja. Ou, por outra, deixar de ser criança, e ser parabenizado por isso, tornando-se uma persona para além do personagem, atropelando fases da vida no trajeto.

Não que o cinema não tenha nos dado sua dose de crianças-adultos. Lembramos aqui da pedagogia do olhar de Shyamalan em O Sexto Sentido (e aliás como se usou mal e arbitrariamente Haley Joel Osment depois daquele filme, sempre como o criança-adulto hollywoodiano da vez, junto com a assustadora Dakota Fanning), lembramos do casal de garotos de O Mensageiro do Diabo, de Sinais, de Os Outros. Todos eles, não por acaso, lidavam com a ausência de um dos pais, e assumiam papéis diversos dentro da estrutura do lar – ou seja, sua condição de crianças-adultos se explicava como tal dentro da lógica específica dos filmes. Curiosamente, neste Festival do Rio, tivemos pelo menos três belos trabalhos de cinema completamente voltados para processos semelhantes de crianças que assumem papéis à frente dos que se esperaria delas, pela ausência de um dos ou ambos os pais.

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Anche libero va bene, de Kim Rossi Stuart (Itália, 2006)

No italiano Estamos Bem Mesmo Sem Você, Kim Rossi Stuart (ator, entre outros de As Chaves de Casa, filme também completamente dependente do seu protagonista infantil) estréia na direção e já prova ter um olhar incrivelmente atento para a filmagem de atores (infantis ou não). Estruturado na já um tanto batida dinâmica da família incompleta, onde um casal de filhos pequenos precisa ajudar o pai a suprir a ausência da mãe (ou melhor, a sua inconstância, como veremos mais tarde no filme com uma das mais fortes entradas em cena de um personagem em muito tempo), o filme possui toda a sua força na forma inclemente como se aproxima de seus personagens. Nenhum deles (pai, mãe, filho, filha) são modelos de comportamento, mas também nenhum deles é demonizado em suas (pintadas em tintas bastante fortes) limitações. A câmera de Stuart é a da simpatia sem condescendência. Nesse sentido, seu filme, se excluímos o registro completamente distinto, parece muito uma versão em live action dos Simpsons (com uma Marge um pouco mais punk, é verdade) – com direito mesmo aos vizinhos Flanders.

Para além disso, porém, o que cria boa parte do interesse do filme é sua definição, gradual, de que se há um protagonista nesta história de uma família, ele é o garotinho. O filme parece ir sendo ganho pelo ator, pelo personagem, pelo seu universo, a partir do momento em que fica claro (“ela vai embora de novo”) que ele é o único que consegue ver de fato o funcionamento das engrenagens que fazem a família andar. Neste processo em que passamos do coletivo para o individual reside uma graça enorme do registro de Stuart: a maneira como ele filma o primeiro interesse romântico do garoto no colégio, ou sua competição de natação, por exemplo, são exemplares. E, claro, o desempenho de seu protagonista (Alessandro Morace) é essencial para isso: sempre entre os momentos de clarividência de um garoto que precisa conseguir se proteger do caos à sua volta, e ainda extrair dele a magia necessária para que se viva uma infância. Seu personagem (e Stuart) nos convencem que a infância “disfuncional”, tão em voga nos hiper psicanalizados anos atuais como justificativa para todos os desvios de caráter possíveis, é a verdadeira infância normal. Disfuncional é o mundo, é o ser humano.

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O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias
, de Cao Hamburger (Brasil, 2006)

No brasileiro O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, a disfunção é histórica e política: os pais de Mauro saem de cena porque precisam fugir da ditadura. Numa série improvável (mas bem colocada em cena) de acontecimentos, o menino acaba sozinho na cidade grande de São Paulo, sem parentes ou amigos que carregue do seu passado. Trata-se, fica claro desde o começo, de uma história de reconstrução de uma identidade (o que passará tanto pelo caráter brasileiro – a Copa de 70, o futebol com os amigos; quanto pelo étnico – a comunidade judaica; quanto pelo de passagem de geração – a descoberta das mulheres, etc). Como se pode ver pela descrição acima, o filme de Cao Hamburger parece absolutamente formatado dentro de uma estrutura mais que conhecida de narrativas de infância no cinema – o que só torna tão mais impressionante o feito do diretor, equipe e elenco de injetar tamanho frescor e vida no filme como fica claro que ali existe.

Seu primeiro trunfo é uma filmagem “de época” que consegue solucionar bem exatamente tudo aquilo que dizíamos outro dia soar “errado” em 1972: nem a direção de arte nem os figurinos têm aquela sensação de “festa no brechó”. Seja pela austeridade do ambiente (a comunidade judaica, o bairro de classe média baixa do Bom Retiro), seja pela discrição e bom gosto dos realizadores, o filme nos planta fortemente em 1970 sem que precisemos receber pauladas na cabeça a cada entrada de cena que nos lembrem disso. O outro ponto é a capacidade de filmar externas com credibilidade, sem parecer desfile de figurantes ou de carros de época. Quando se é preciso ir para fora, o filme vai sem medo do plano geral, mas também sem exageros auto-centrados; quando é pedido um registro intimista ele o faz – em nenhum dos casos se sente aquela contrição da câmera, como se qualquer movimento para um lado revelasse os signos da atualidade do cenário da cidade. Acreditamos, em suma, no 1970 do filme, ele não é uma questão para nós – por isso podemos nos concentrar no que importa, os personagens. Claro que até aqui falamos apenas do sucesso da realização em seus aspectos mais práticos (dos quais poderíamos citar ainda a montagem, a fotografia e a música original, precisas) – mas convém notar como estes rudimentos são essenciais, ainda mais num cinema que deseja uma alta comunicabilidade com o público.

Mas, é claro que não é esse o único nem o principal trunfo do filme. Hamburger já havia demonstrado no ótimo Castelo Rá-Tim-Bum que sua força maior é unir a capacidade da articulação narrativa com um diferencial de atenção ao personagem, ao ator, ao ser humano dentro do espaço que ocupa. Assim é que os filmes resultam muito parecidos, aliás: em ambos existe o ambiente da casa, com aspectos um tanto fantásticos (o castelo em um, a casa do avô falecido em outro), e a tensão constante entre o ambiente desta e o exterior – acima de tudo, a necessidade de conformar um e outro, de aprender a viver na casa e no mundo ao mesmo tempo. E, em ambos os filmes, pouco se passa de fato em termos de trama, sem que o filme precise fazer disso um “ponto de força” (um elogio excessivo da contemplação). São filmes de climas, de trocas, de encontros, de confrontos entre os seus personagens, que tiram seu sentido justamente deste acúmulo de experiências que é o que molda a passagem da infância para a adolescência. E, neste ponto, Hamburger conta com um protagonista impressionante, que consegue passar nos seus incríveis olhos, toda sua apreensão do mundo. Apreensão que testemunhamos muitas vezes de maneira indireta, com os constantes reflexos em janelas e TVs que nos mostram o olhar do menino e o que ele vê/experimenta, ao mesmo tempo, numa exemplarmente discreta superposição entre a linguagem do filme e o seu protagonista.

A partir de todos estes sucessos é que o filme consegue driblar sua última armadilha: nos fazer acreditar na força desta micronarrativa individual de passagem, dentro do contexto político da ditadura. A forma como Cao Hamburger articula os dois ambientes (pessoal e sócio-político) é ao mesmo tempo simples e profundamente significativa, provando que não há problema em não se fazer “filme político” sobre o período (sempre o que ouvimos como justificativa para críticas a filmes do período, como o recente Sonhos e Desejos), apenas há problema em se chanchadear a vida (pelo menos sem intenção expressa de fazê-lo), seja em que época o filme se passe. Os personagens efetivamente políticos do filme (os pais, o personagem de Caio Blat) não precisam fazer discursos ou viver de maneira unidimensional (a torcida deste último no jogo entre Brasil e Tchecoslováquia resolve a questão de maneira leve e ao mesmo tempo contundente). Eles podem simplesmente viver, e fazer disso uma política – como aliás se fecha lindamente o filme em torno, primeiro, da ausência em cena da comemoração pela vitória na Copa (a volta do menino para casa nas ruas vazias é belíssima), e depois com a volta da mãe, sem o pai. Ausências estruturantes de um discurso autenticamente político, justamente porque humano.

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El Laberinto del Fauno, de Guillermo Del Toro (Espanha/México, 2006)

Finalmente chegamos ao falso filme infantil de Guillermo Del Toro, sobre o qual já falamos aqui. Da revisão do El Laberinto Del Fauno dentro do Festival do Rio, só gostaria de somar algumas pequenas impressões: primeiro de tudo, justamente por ter sido tomado nos últimos dias por tão impressionantes atuações infantis, que neste contexto me emocionou menos o filme de Del Toro (inclusive porque acho que é um filme que depende muito da inocência de um primeiro olhar para exercer sua magia), justamente por ver na sua protagonista, Ivana Baquero, uma interpretação infantil menos cativante do que as outras – tanto no seu lado selvagem-infantil quanto no seu lado adulto, essencial ao filme. Em segundo lugar, por outro lado, se reforçou para mim o pulso de Del Toro e sua condução essencialmente política do filme: tanto no sentido da sua retórica anti-fascista (retórica que não está discursada nos diálogos, e sim posta em cena na superposição entre mundo dos sonhos e mundo dos pesadelos da realidade); quanto no sentido da política do cinema mundial, de afirmar a possibilidade de uma grande produção de gênero completamente fora dos quadros hollywoodianos, falada em espanhol. São aspectos curiosamente antitéticos do filme, que aumentam e diminuem seu impacto sobre mim, mas que me fazem ter certeza da sua importância no cenário do cinema mundial de hoje, tanto pela confirmação de um autor quanto de uma forma de produção.

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