ensaios
Filmar, hoje, uma cidade (Paris, Tóquio,
Pequim, Sarajevo)
por Felipe Bragança
Mecanizada como engrenagem de ordenação, idealizada
como cosmos social criativo, a cidade é hoje o lugar tanto da celebração
do impossível, em seus palácios de bem-estar e sua construção da
imagem em forma de rotina, como também da impotência individual
do olhar e da busca pela fuga, pela migração, pelo desvio subterrâneo.
Este é um comentário curto sobre o olhar para as cidades em alguns
filmes recentes, procurando sentidos de cinema na luz que se projeta
entre paredes, rebate-se em superfícies, e se perde entre recortes
e molduras.
Geminado, emaranhado à dramaturgia, ao gesto do
ator, ao quadro, está o lugar em que o corpo se realiza – o cenário
cinematográfico como tabuleiro de imersão e emersão de um corpo
aberto a ser habitado. O filme que habita as cidades é o que nos
interessa aqui. Um convite a algumas formas entusiasmadas de olhar
o espaço urbano como molde e ruptura fundamental do tempo que
o sustenta.
* * *
Imersão
Claire Denis (Vendredi Soir) – cidade-luz;
Vendredi Soir (2002) é o começo de nosso comentário: um
filme estruturado como carga sensível de superficialidade (traço
recorrente na obra da diretora), e que aqui transforma sua trama
narrativa em uma espécie de sussurro luminoso anterior aos gestos.
A cidade de Paris encontra no cinema de Denis um esforço no sentido
de uma vibração orgânica das imagens, onde o concreto das ruas,
as luzes dos carros, o peso das construções é transformada em
suspensão quase alquímica. Agnés Godard (fotografia) e Denis transformam
concreto em luz ou, ao contrário de buscar uma cidade que recorta
a luz, encontram uma cidade que se ergue da luz.
Antítese da paisagem vasta e do olhar épico em
que a luz se “deita” sobre a superfície, os pedaços de cidade
em Vendredi Soir são em si mesmos construções sensacionistas.
A cidade toda ecoa, transpira, em um impulso corporal que é mediado
pelos personagens em uma espécie de caldo da onde a narrativa
se secreta.
O urbano aqui não se dá como espaço opaco a ser
ocupado, mas como sentido de ritmo (aí o jogo de luzes dos faróis
no tráfego intenso) e de dispersão luminosa (a umidade dos focos
de luz, os focos e desfoques). O que se vê são profundidades e
sombras, que se atravessam e se emaranham. Antes daquilo que se
desdobra, a narrativa cinematográfica aqui é aquilo que desenha
formas e instala visibilidades – não justapondo ruas, edifícios
e esquinas, mas acumulando-as em sobreposição de ângulos, de rastros,
de volumes. Refratando-se e se chocando, dispersando-se e se focando.
A cidade, toda ela, como a luz que ela emana.
Hou Hsiao-hsien (Café Lumiere) – cidade-som;
Ocupar um espaço/filme em Café Lumiére não é avolumar seus
objetos/eventos, mas antes de tudo avolumar sua disposição e harmonia.
Este é nosso ponto de partida. A descrição de gestos, nessa homenagem
ao sentido de um cinema elementar, é um estudo sobre aquilo que
recria a superfície dos gestos para além de sua localização isolada
no espaço. A cidade de Tóquio aqui é encontrada não como o clichê
de um dilema tradiçãoXmodernidade, mas como um tempo, ou acúmulo
temporal, que se dá nos espaços vazios que se acoplam na circulação
dos corpos, nos túneis de metrô, nos trilhos de trem, nos cômodos
das casas. Espaços vazios que, na cidade, são tomados pelo som
que os ocupa, pela sonoridade que os reverbera como uma caixa
de ressonância.
A idéia de uma amplificação e variação de vibrações
substitui a cidade sem memória ou onde as memórias se sobreponham,
e ergue a cidade como memória sonora. A idéia de amplificação
sonora, para todas as direções, nos é conduzida tanto como o objeto
de desejo do jovem protagonista como pela pesquisa musical realizada
pela jovem. A recorrência do trem urbano como circulação e itinerário
sonoro pesquisado reiteram esse sentido de um movimento que não
segue a linha reta causal (em que os pedaços obedecem normas),
mas linhas melódicas entrecruzadas, em que as partes se dão como
harmonia e desarmonia. O espaço urbano se ergue em Café Lumiére
como emaranhado musical – o mesmo emaranhado onde se esconde a
música do passado que a menina quer reencontrar. Um cinema como
este é um cinema que tira do corpo seu distanciamento e/ou antagonismo
com o espaço, e fazem do pôr-em-cena uma arte da composição. Os
sons dos corpos não se anulam, mas se misturam. A cidade-sonora
muda e se desdobra pela contaminação desses sons, desses tons
e sub-tons memoriais. Uma Tóquio aqui que não abriga vozes, mas
que é, ela mesma, a forma como essas vozes ocupam a cidade. A
história urbana e a construção da cidade cinematográfica se dão
então como mixagem sonora – ao mesmo tempo os mesmos sons, que
se repetem, ao mesmo tempo totalmente outros pelas modulações
por dentro de sua textura. Nem amnésia, nem embotamento. Nem o
urbano como morte espiritual, nem como seu excesso. Um cinema
em que a cidade não se perde pelo usual ou pela rotina, mas que
resiste como vivacidade aos ouvidos mais atentos. Aos pequenos
ouvidos.
Emersão:
Jia Zhang-ke (O Mundo) – cidade-torre;
E o que há para além da instalação? O mundo todo vê a cidade ou
a cidade constrói o mundo todo que a vê? A Pequim de Jia Zhang-ke
em O Mundo levanta aqui uma outra formulação – a da cidade-totalidade
por reprodução. O eixo da observação urbana aparece aqui como
filmar na cidade tudo o que não é dela. Porque talvez esteja aí
uma base de reflexão imagética das cidades hoje: a cidade aparenta
sempre tudo aquilo que ela não é. Não por aparência falsa – mas
por essência superficial: a cidade, o urbano hoje, se caracteriza
por uma reprodução de elementos estranhos a ela. Quando mais alteridade,
mais urbanidade. A cidade é o que nela se torna deslocado.
A Pequim de Jia Zgang-ke não é, então, lugar confortável,
construído como um todo, mas uma coleção fragmentária de alteridades.
E seria nessa indisposição imagética de signos e espaços que ela,
de alguma, forma se tornaria mais presente, mais real. É central
no sentido da identidade imagética urbana hoje esse sentido de
torre de vigília – de paradoxo de construção cujo propósito é
não se olhar, mas olhar para longe. Os restos, os vultos, as sombras
do mundo todo que se vê do topo dessa cidade-torre é o que constróem
a cidade – mas não há mundo outro totalizado senão o que essa
vigília pode construir. Os planos da cidade imensa, das torres,
do parque de diversões que simula/imita outras cidades são a cidade
possível de uma imagem saturada – mas Jia Zhang-ke dribla a saturação.
Não há cidade-imagem que não o Mundo, não há mundo que não o que
as cidades, pólos de cristalização, encontro e ordenação de fetiches
e derivas visuais, nos narram. Pequim é a torre de vigília de
seus personagens. Filmar uma cidade é filmar a luz que ela emana
no reflexo do que ela vê. E, nesse sentido, o trágico se instala
como imitação do trágico, e a cidade retoma sua história como
vontade de presente.
Jean-Luc Godard (Nossa Música) – cidade-cratera;
Em Nossa Música, a cidade falta – porque é a força motriz
do que constrói também pelo que ela ausenta. A cidade ao se fragmentar
é a negação da paralisia – pela falta de seus pedaços de seus
lugares, a Sarajevo atingida pela guerra nega a História como
permanência, nega a permanência como história. A paisagem urbana
em Nossa Música aparece em outro viés – o vi és de cratera,
de afirmação negativa do espaço. O que não está lá, está lá. E
o que não está lá pode se reafirmar e desviar. A cidade em afirmação
pelo que lhe falta, pelo que lhe fere, tira aqui a ordem de seu
lugar posto. A cidade é também tudo o que não se encontra nela
e o que se sente falta nela – as lacunas de sua estrutura, desconstruída
pela violência da guerra, aparece como identidade negativa e reativa
– a cratera é a afirmação negativa da terra que lhe falta.
E nessa falta, nessa aparente tristeza da falta,
reside um olhar alegre pelo que reafirma. A ponte que falta, os
prédios sem os últimos andares, a biblioteca sem paredes – Godard
constrói uma cidade em ausência. Olhar uma cidade é olhar também
o que ela nos priva, o que ela sugere que esteve ali antes, o
que ela denota como destruição, como jogo de erros das afirmações
concretas. Olhar a cidade em Nossa Música se localiza também
como essa abertura ao que substitui os espaços e aquilo que não
está mais ali como proposição. Esse sentido fantasmagórico da
cidade que reside nas sombras restantes – ruínas vistas, também
ruínas de imagem, de cinema. Olhar a cidade, enquadrá-la, tem
aqui outro ponto de reflexão: a criação pictórica da imagem que
não se vê. Olhar a cidade não se confunde aqui com o que ela excede,
mas pelo que nela falta, pelo que esta nos pedaços, nos ângulos
incompletos, nos buracos no solo, nos envelhecimentos das estruturas,
nos quadros limites, nos extra-campos que ela não realiza e sugere
como lacuna. A cidade cratera, a imagem cratera, acima de tudo,
deseja.
* * *
De que forma o cinema brasileiro hoje tem encontrado,
olhado para as cidades que o emergem?
Em nossa crise de linguagem, em entremeios televisivos
cenográficos e esforços de investigação dramatúrgica, fica aqui
um movimento sugerido ou intuído: entender, antes da trama, do
diálogo, da ideologia discursiva, o que emerge das cidades, dos
espaços visuais em que nos debruçamos. Não os temas, mas as formas.
Cidade moderna e cinema crescem juntos – e se criticam e reformulam
em diálogo. Se a cidade e o urbano já não são mais aqueles, o
cinema também não. A decadência mútua de linguagem, e a sua recorrente
insurgência contra a sua derrota, não à toa acontecem em paralelo.
É também uma crise de linguagem do urbano. Uma crise de frutos
belíssimos, que vão também às fronteiras com a eternidade e o
contra-sonho que as cerca (cito Tropical Malady de Apichatpong
Weerasethakul) ou ao microcosmos de sua política (Edifício
Master, de Coutinho). Reconstruir as cidades e sua dinâmica,
hoje, é também reconstruir a forma de construí-las nas imagens.
Fugindo do ideal de nação que nenhuma lente enquadrada, de país
que nenhum microfone captura, do território generalizado, a cidade
como cinema, como o quadro, é objeto primordial de imanência do
que está ali e do que falta, nunca do todo. A cidade (pequena,
media, minúscula, grande) está presente e é imagem e é som: o
país não. E cinema é, de alguma forma como os mapas, uma questão
também de escala.
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