ensaios
Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos)
por Felipe Bragança

O cinema como um atributo superficial, pele da imagem, da película ou do formigamento digital. A proposta aqui é pensar algumas formas de aproximação do gesto cinematográfico, da câmera-ao-corpo, na construção da espacialidade que aponta os sujeitos moventes e a instalação do sentido de “personagem” em alguns expoentes do cinema contemporâneo. Trata-se aqui, portanto, de um rápido olhar sobre a fisicalidade-cinema e as formas de atuação no espaço da imagem.

É importante, para que sigamos do mesmo ponto, um elogio detido ao sentido de “superficialidade” que aqui nos interessa: um atributo de cinema em que não nos apetece aquilo que simboliza ou remete à, mas aquilo que, em si mesmo, no grafismo imanente da imagem, é uma presença.

PRESENÇA. A superficialidade aqui é, portanto, um interesse pela camada aparente, e por aparente que não se entende falsa – o cinema com o qual flertamos aqui é um cinema que constrói “personagens” como localizações no espaço, atuações no espaço, vibrações táteis no(s) plano(s). O corpo como começo e fim expressivo, não como meio da ação ou sinal de algo além dele ou sob.

Assim, Jean Rouch. Assim, Keaton. Assim, Pedro Costa e as esfinges; assim Gus Van Sant e os meninos. Assim Apichatpong (foto acima, Tropical Malady) e seus bichos, assim Claire Denis e os organismos, assim Jia Zhangke e sua China.

* * *

A pergunta que me traz aqui, “o que pode um corpo?” (Spinoza – filosofia prática – Deleuze), pode ser revista e nos interessar ainda mais da seguinte forma: o que atua um corpo no cinema? Ou ainda: o que ele é capaz de atualizar? 

Essa é a base e pilar do que esperamos aqui refletir como construção corporal cinematográfica – a definição da imagem como um corpo atuante, e nessa atuação a proposta do sentido de personagem como construção física-superficial da dramaturgia.

Não é novo pensar na dramaturgia cinematográfica como uma dramaturgia das ações concretas, objetivas, gestuais – o cinema é uma revisitação (em aproximação e distanciamento) de gestos distribuídos como imagem. O que eu queria tatear, deixando de lado mesmo o sentido direto de ação como intervenção sujeito-objeto, é o esforço/traço cinematográfico que procura sustentar seus personagens não por acumulação de ações diretas, mas antes de tudo por suas capacidades – pelas ações em acúmulo muscular e não como gasto:

Para isso, pescando os sentidos de Spinoza para a definição de um corpo, podemos transcrever que um corpo cinematográfico pode ser encontrado sempre a partir de sua capacidade:

a)      Cinética: ou seja, um “personagem” como o conjunto de partículas de elementos expressivos que o compõe em variações de movimento e repouso. As inter-relações entre suas velocidades e lentidões – do gesto, da fala, do cansaço, da explosão muscular – esses traços que individualizam o corpo antes mesmo do “sujeito” dramático.

b)      Dinâmica: ou seja, a forma como cada corpo interfere e se fere no contato com os outros conjuntos de partículas – outros corpos. Ou seja, como se afeta ou é capaz de afetar outros corpos.

É no cruzamento dessas duas atribuições que o personagem cinematográfico que aqui nos interessa se impõe – e é claro que, de cineasta para cineasta, de filme a filme, há preponderâncias diferenciadas dos mesmos.

* * *

No cinema de Pedro Costa, essa relação entre as figuras que o compõem é evidente como traço de gesticulação cinética: um corpo (Mario Ventura) atua um personagem (Ventura) quando atualiza suas capacidades de afetar e ser afetado – no caso de Juventude em Marcha, podemos pensar a relação de choques e entrechoques de Ventura com seus filhos e as paredes/concreto por dentro das quais circula. Esse personagem, ali, antes de compor um sentido de drama pré-moldado, é em si mesmo um caldo de possibilidades como presença diante de si: poderia se dizer que não desempenha uma função dramática, mas uma localização geométrica de expressão – ele existe porque atua, não atua para existir.

Os personagens seriam então pensados como individualidades não por sua forma primeira (penso em Apichatpong e o jogo de confusão que ele estabelece entre corpos humanos, bichos, plantas, estátuas, mecânicas e organismos) ou por sua carga psicológica amarrada; mas pela forma como passam entre os outros corpos, se chocam, atraem, repulsa e descansam.

(Uma dramaturgia cinematográfica que atua ocupando espaços em espiral – talvez “sonora” por falta de melhor imagem, talvez “musical”, sonho de toda imagem.)

Antes de ser um sujeito – um personagem em Pedro Costa ou em Apichatpong é um corpo com capacidades de interferência e inferência – o personagem/sujeito se dá pela secreção desses elementos expressivos sobre o que os cerca. Daí, nessa construção, que o lugar da imaginação, da palavra e do realismo se emulam – já que não há psicologia, IMAGINAÇÃO, que não a dos corpos. E não há nada mais real/capaz do que um corpo.

* * *

OBS: É interessante notar esse efeito de libertação do personagem como função se compararmos o trabalho desses cineastas aos recentes trabalhos de Tsai Ming-liang: ali, o corpo aparece antes de tudo como um estado de alma, uma simulação de espírito, de estado de espírito (e não o inverso que temos, em especial, em Costa). Comparar a contemplação de Lee Kang-sheng (acima) a de Ventura nos ajuda a pensar esse caminho: uma é a contemplação de um estado de alma que submete, como signo, um corpo (Lee), a outra é um estado de corpo que decalca um estado (Ventura). Daí a palavra em Pedro Costa, como elemento físico da imaginação ser fundamental (como em Straub sempre o foi) e o silêncio de Tsai Ming-liang se tornar gesto de segregação (como em Antonionni).

Em Tsai Ming-liang, especialmente em seus filmes mais recentes, me parece que essa preponderância da alma-signo sobre os corpos tem  levado suas imagens a um fetiche que se poderia chamar de uma sublimação gráfica do presente – que o afasta do cinema-sintoma de seus primeiros filmes (tendência corporal, da imagem como doença ou sensação) em direção a um cinema-metáfora.

* * *

Essa diferenciação é importante porque aqui, note-se, não está interessando necessariamente um cinema focado na não-trama, ou na ação não-dramática. Seguindo nosso o trajeto e retomando a pergunta inicial (“o que pode um corpo?”), o que estamos pensando aqui é um certo sentido de dramaturgia/narrativa de cinema em que se anula a questão “quem é o personagem?”, se impondo no lugar a questão “o que pode esse personagem?” É a partir do que um personagem pode ou não pode, que se desenhará um sentido de trama, não o inverso. O que é completamente diferente, percebamos, de uma anulação da trama.

Em um filme como Last Days, Gus van Sant exprime de maneira firme essa proposição ao se entregar ao tempo e ao gestual de sua figura, de seu vulto. A trama pré-conhecida do suicídio não deixa de ser narrada como acúmulo e relação de eventos, mas não se novela como funcionalidade. São as impressões e variações de cansaço daquele corpo que inferem a narrativa. Eu vejo, antes de narrar.

Não pensemos, porém, na lógica de um cinema que negue o lugar do roteiro, da construção de ganchos e conexões dos elementos (a noção de abstração ou de sensorialidade pura), a diferença está naquilo que se interessa enganchar, nos tipos de elementos de roteiro que se desenham para esse grande tabuleiro que se abre diante do filme e diz a ele: não me atravesse, me ocupe! (os reality-shows-de-convivência, tipo Big Brother Brasil bebem dessa mesma premissa e tem resultados brilhantes em momentos particulares).

Da mesma forma, na recorrência da mistura entre o lugar do intérprete e do interpretado (os meninos de Van Sant, os personagens-bichos de Apichatpong, Ventura/Vanda em Costa) o que se nota é a ausência da lógica interior-exterior em que o ator apareceria como um agente que declama um personagem ou um corpo que é habitado por um personagem. Nem uma coisa nem outra: a mesma operação que funde o sentido de real/corpo e imaginação/palavra nesse cinema, confunde agente criativo e criação. Quando Apichatpong Werashetaul confunde seus corpos humanos com corpos de animais e plantas (foto acima: Tropical Malady), quando Pedro Costa mistura e choca Ventura com as infiltrações ou o branco das parades, não vemos ali um ator vestindo uma idéia, mas um corpo que é, em si mesmo, uma idéia.

É a mesma substituição que Claire Denis (junto com sua fotógrafa, Agnès Godard) parece fazer de seus atores por suas peles, seus bafos, seus movimentos antes de serem atores – anulando as personas em prol de uma certa sintonia luminosa (ao lado, Vendredi Soir). É, de alguma forma, e de forma inversa, aquilo que a potência da interpretação em Cassavetes vai construir em seus filmes: um sentido de coesão extrema da técnica e somada a um certo “descuido”, uma falha na verdade cênica, que infere ao personagem um ultrapassamento de seu estado de “enunciado dramático” ou ícone discursivo.

A idéia, o desejo cinematográfico é, aqui, então, corpo. Não se fala dela (a idéia) na imagem – se fala com ela.

* * *

Esse movimento pode ser visto na circulação dos corpos em Elefante, onde a ação drástica não é senão elemento constitutivo de um mesmo caldo de ações e atuações em que não existe um referencial do discurso senão aquele que os corpos presentes são capazes de celebrar.  A superficialidade dessa circulação dramática não é, portanto, um esvaziamento político do corpo. O político justamente, aparece em seu sentido de afirmação antes de tudo de um afeto primordial; como a afetividade se torna pilar para a composição das trocas expressivas da imagem, do cinema todo.

Da mesma forma é impressionante ver como no cinema de Jia Zhangke, em especial de Prazeres Desconhecidos até agora (ao lado, Still Life), essa brecha do político encontra nos coletivos, nos espaços de coletividade, onde a câmera transita em ruínas e por grupos de homens, festas, colegas de trabalho, um sentido de testemunho do todo, de intuição do todo – de um todo China e mundo. A política e o coletivo em Jia Zhangke (e não menos em Costa) retoma, sussurrada  mas não diminuída, os corpos primeiros de que se secreta. Como o sonho e o prazer em Denis (de Vendredi Soir a seus trabalhos com a dança, passando por O Intruso), são uma reforma da própria percepção da polis pelo atos dos corpos que desejam-se e se atritam...

Atrito! E por isso um sentido de cinematografia amorosa nos aparece aqui como nomenclatura adequada. Seja na afirmação sonora da palavras caboverdianas, seja no murmúrio ou no berro do Kurt Cobain mimetizado, seja na flutuação dos corpos pelas corredores de um hospital (Síndromes e um Século, Apichatpong – mistério a ser revisto): a fala, as palavras, o som da boca e dos gestos sonoros (choques de partícula) nos remetem a uma cinematografia construída na pan-qualificação dos sujeitos, dos objetos como sujeitos, e das paixões que neles se evocam. Não interessa a descrição ou o sentido de corte crítico (que me desculpem os analíticos), mas um interesse pelo amoroso encontro entre as partes, numa espécie de dança em que a câmera-drama se infere como parceira: os sujeitos-corpos se tornam sujeitos pela interferência mútua, não por premissa discursiva

* * *

OBS: Mais uma vez, é interessante pensar as imagens de um Big Brother Brasil e a emergência do drama a partir dessa simulação de normalidade construída pela intensificação e adensamento geográfico (a demografia do afeto nos reality show de convívio nos metros quadrados da casa é o estopim): catalisação amorosa, odiosa, tátil, do que depois, chamem como quiser, se torna competição e entretenimento, show de méritos e gênero. 

* * *

Nesses cinemas que aqui olhamos de relance, o próprio sentido de figuração, figura e fundo, protagonismo, se perde porque não há fundo senão aquele que se depreende ou se choca como agente do personagem, e vice-versa, não há pequenez dramatúrgica nem eventos centrais, há mediações de espaços e brechas. O evento dramático, a ação dramática é achada como erupção física (mais uma vez, Elefante ou Last Days) e não como encadeamento cronológico de onde o filme adviria como simulação dramatizada de um arco psicológico. Personagens aqui são a sua capacidade de se apontar adiante, de se projetar como um corpo que brinca, que DANÇA (vale lembrar a Pocahontas de Malick, para não cometermos injustiça...), que joga. Personagens aqui são aquilo que falta, aquilo que se dá como falta.

O corpo , filma-se o corpo então – o personagem ainda não. O drama não há – porque é a própria imaginação e a imaginação já é cinema. O drama é o vácuo que um corpo-em-ato propicia diante de si e ocupa incessantemente no plano – como um burro que segue a cenoura presa à sua testa na imagem da parábola. O drama não é evolução temática, visita a museu, encontro com fatos. Daí o personagem, nesses cinemas, aparecer como elemento a se mapear, não a se destrinchar. Pois o mapeamento se dá como descoberta da circulação, não da intenção final – os tabuleiros não se pensam além dos planos. Eduardo Coutinho (acima, Edifício Master) é um desses estudiosos da cena que repetem a saudável ladainha de que o que lhe interessa é o que está ali, o que aparece – o que aparenta. (porque algumas coisas aparentam mais do que outras). E tão mais rico será o personagem, quanto mais ativável for o corpo que ali se apresente.

Fica, portanto, o interesse, por um cinema que repense (em especial no Brasil) hoje sua dramaticidade não a partir de eventos ou temas ou premissas globais de relevância, mas da escala do corpo como lugar de peso e volume, do gesto (antes das funções de classe), em que a multidão tem afetos e capacidades de afetar para além das manobras narrativas ou das induções descritivas do que se quer como real cotidiano ou identidade cultural (seja ela “central” ou “periférica”).

* * *

Mas, afinal, o quê pode um corpo apaixonado? O que pode um filme?

Siga-se pensando.

editoria@revistacinetica.com.br

« Volta