em primeira pessoa - cobertura do Festival do Rio
Os filmes que eu não vi no
Festival do Rio 2006
por Eduardo Valente
Se é verdade que, em parte,
escrever sobre este assunto a título de balanço
do Festival do Rio tem a ver com o fato de que praticamente todos
os filmes que eu vi foram comentados por mim na Cinética, não
é só por esta razão que resolvi aqui me centrar nos que não vi.
A questão que fica clara para mim ao longo de um festival como
este, que nos oferece em torno de 400 títulos ao longo de duas
semanas, é que nossa programação é muito mais moldada por aquilo
que optamos e decidimos não ver do que exatamente pelo que queremos
muito ver. Afinal, sempre que pego o caderno de programação do
Festival do Rio ou da Mostra de SP, este é meu primeiro movimento:
riscar tudo aquilo que não quero ver (ou que já vi), seja por
algum motivo relacionado aos filmes, seja porque estão programados
em salas muito distantes das regiões que privilegio e que ficam
mais próximas da minha casa e escritório. Uma vez riscado o que
não vou ver, fica bem mais fácil partir para o passo seguinte:
decidir o que ver.
Neste ano, o processo de decidir o que não ver se revelou um tanto
mais radical que em anos anteriores – já na análise da programação,
mas principalmente na rotina do dia-a-dia do Festival. Se em anos
anteriores eu via uma média de quatro a seis filmes por dia, este
ano a média ficou em torno de três, sendo que houve alguns dias
com apenas dois filmes vistos – vale dizer que todos estes dias
com menos filmes vistos tinham originalmente sido programados
com mais filmes, que acabei desistindo ou perdendo.
Claro que há alguns motivos absolutamente práticos
para esta diminuição: primeiro, o fato de que foi um ano em que
pude estar no Festival de Cannes em maio, e com isso já tinha
visto um bom número dos títulos mais aguardados; segundo, o simples
fato de ter que colocar no ar a cobertura diária da Cinética,
tanto escrevendo textos quanto formatando os dos colegas, processo
que ocupa algumas boas horas por dia e foi responsável por alguns
dias de começo mais tarde no Festival do que eu tinha programado;
finalmente, havia motivos de ordem pessoal mesmo, que não têm
o menor interesse para o leitor mas que certamente influenciaram
as opções por não ver algumas sessões. Mas, mesmo com tudo isso,
eu me peguei surpreso pela quantidade de vezes em que eu simplesmente
não tive ânimo (ou a famosa “pilha”) para sair de casa e correr
para o cinema durante o Festival. Com isso, fui percebendo algumas
coisas relacionadas com uma visão atual minha do cinema (e do
Festival), e acho que é isso que pode ser interessante discutir
aqui. Vamos a elas:
- O fator “curadoria”
O Festival do Rio, no seu gigantismo de programação,
que atira para todos os lados, não possui um determinado olhar
de cinema consistente. Não estou dizendo que isso é um problema
como opção de curadoria (afinal, pode-se decidir
por esta abrangência), mas sim que isso determina a minha
presença nele. Porque, quando surgem no Festival uma quantidade
enorme de filmes “desconhecidos” (ou seja, que não tiveram uma
repercussão particularmente forte em outros festivais ou mercados
pelo mundo), geralmente a máxima que vale é: se você não ouviu
ninguém falar bem deste filme ainda, nem se preocupe em ver. É
raro que se consiga descobrir no Festival do Rio uma pérola bruta,
um autor desconhecido.
Claro que o Festival já apresentou uma série de diretores ou filmes
pouco conhecidos do grande público brasileiro – mas é raro que
tenha apostado em algum nome desconhecido (ou não reconhecido)
lá fora, e sido pioneiro mundial nessa aposta ou descoberta. Se
festivais como Cannes, Veneza e Berlim geralmente costumam receber
a “nata” do grande “cinema de arte” mundial, há festivais, como
os de Roterdã e Locarno, que possuem um olhar atento para nomes
ignorados pelos festivais maiores - cineastas que se tornam conhecidos
através destes festivais menores, mas com uma curadoria ousada.
Não é este o caso do Festival do Rio.
Para pegar um exemplo, podemos ver o de Sunichi Nagasaki, cineasta
japonês bem pouco conhecido, que teve seu filme mais novo (Coração,
Batendo no Escuro) exibido no Rio este ano. Claro, para o
público carioca e brasileiro é ótimo que o Festival o esteja apresentando,
mas Nagasaki teve uma retrospectiva completa do seu trabalho este
ano em Roterdã, mostrando mais de 30 anos de filmes. Portanto,
o Rio apresenta sua obra ao Brasil sim, mas segue o caminho que
Roterdã tinha apontado em termos internacionais, e com algum atraso.
Em termos práticos, o que isso significa é que, quem está atento
aos principais programadores internacionais, pega informações
como esta sobre Nagasaki, e sabe que trata-se de um filme de algum
interesse para ser visto.
Só que, neste ano, o que mais aconteceu no Festival do Rio foi
a exibição de uma enormidade de títulos completamente obscuros,
sem recomendações de quase nenhum lugar. Seguindo a lógica que
dispus acima, eu fugi de quase todos estes filmes, esperando que,
na peneiragem que fazem uma série de amigos mais dispostos
(e jovens...), me fosse indicada a existência das pérolas escondidas.
Mas, fato é que neste ano, ainda mais do que em outros, quase
todos foram unânimes em afirmar que esta pérola não existia, e
o desânimo era geral com os filmes desconhecidos. Especificamente,
na mostra “Expectativa 2006”, o que se concluiu é que não há muito
a esperar dos próximos filmes dos realizadores apresentados (sempre
com as honrosas exceções). Quando se apontava alguma “surpresa”,
ela não era exatamente isso: tinha Alice, exibido em Cannes
2005; ou Man Push Cart, muito elogiado na Cahiers du Cinema;
ou Andrew Bujalski, também já com certo renome no circuitinho
mundial. Ou então, era caso da descoberta tardia por aqui de algum
nome já mais que reconhecido lá fora, como Nobuhiro Suwa (Um
Casal Perfeito). Fato é que tenho certeza que economizei muito
tempo não indo fazer garimpagem, a julgar pela quantidade de relatos
de saídas no meio da sessão (ou bem no começo) ou de críticas
decepcionadas pelos filmes desconhecidos.
- O fator “autores cansados” (ou “cansado de
autores”)
Enquanto marcava minha programação, fui descobrindo
também o quanto estou desinteressado pelo cinema de uma série
de supostos “grandes autores” do circuitinho de arte atual. Não
se trata aqui de não querer ver filmes de alguns diretores que
muitas vezes me desagradam, mas que mexem comigo de maneiras diferentes
(como Michael Haneke, por exemplo), mas sim de diretores que têm
feito um trabalho que, consistentemente me desinteressa de tal
maneira, que só me permito ver seus novos filmes em épocas muito
menos estressantes do que os festivais – quando vejo.
A seleção deste ano estava especialmente prodigiosa em filmes
desses nomes: alguns já com carreiras um tanto provectas (sendo
que vários com filmes que me interessaram bastante, só que tempos
atrás), como Zhang Yimou, Wim Wenders, Luc Besson, Ridley Scott,
Kim Ki-duk, Mohsen Makhmalbaf, Kevin Smith, Michael Winterbottom,
Neil Labute, Chen Kaige; outros que conseguiram despertar antipatias
bem rápidas como Darren Aronofsky, Roberto Benigni, Isabel Coixet,
Lukas Moodyson, Iñarritu ou Fernando León de Aranoa. São todos
diretores que eu não tenho a menor pressa de ver seu mais novo
trabalho – ao contrário de prodigiosos velhinhos como Scorsese,
De Palma, Almodóvar, Moretti, Altman ou Chabrol; ou jovens já
essenciais como Pedro Costa, Xavier Beauvois, Emanuele Crialese.
Os últimos, para mim, são cineastas vivos, porque me surpreendem
e instigam, enquanto os anteriores já estão quase mortos no meu
olhar (como potência criativa, ao menos). Ótimo para eles que
continuem na lista de prioridades no cinema mundial, mas ótimo
para mim também que tenha um pouco mais de tempo livre nos festivais.
Claro que sempre há espaço para mudanças de posição
nesta lista, que não pode ser mais realista que o rei. Este ano,
por exemplo, descobri renovado interesse em veteranos como Stephen
Frears ou jovens como Daniel Burman – ótimo, fico muito feliz
com estes momentos. No entanto, também é verdade que o Festival
colocou alguns outros diretores à beira de entrarem na lista dos
que não me fazem sair de casa: Gianni Amelio, Patrice Chereau,
Diego Lerman, e, já desde Cannes, Bruno Dumont e Richard Linklater.
Aqui, a questão é imediatamente oposta ao primeiro fator citado:
o problema não é não saber nada sobre o trabalho deles, e sim
já saber demais.
- O fator “contemporâneo”
Desde que acompanho de perto os festivais de cinema,
sempre tive um problema com as retrospectivas apresentadas durante
os eventos. Claro que acho essencial que elas existam, mas acho
uma pena que elas só existam misturadas com os festivais. Da minha
parte, acho muito difícil a experiência estética de enfiar um
filme de Visconti (ou Ozu, ou Rossellini, ou Mizoguchi, para citar
exemplos de anos anteriores) no meio de uma programação centrada
na contemporaneidade da produção de audiovisual. São registros
que, para mim, não colam, não casam. E aí, exceto em casos extremos
(como no ano passado, em que diante da chance de ver a obra quase
completa de Manoel de Oliveira na Mostra de SP, quase não assisti
a nenhum filme fora da retrospectiva dele – em parte escudado
por já ter visto Cannes e Festival do Rio), minha opção é pela
contemporaneidade - no que já recebi muitos puxões de orelhas
dos amigos e colegas de trabalho, por ter ignorado totalmente
exibições de filmes essenciais da história do cinema.
O primeiro motivo para esta opção é porque acho
que esta contemporaneidade apresentada é uma chance mais única
e urgente. Claro, alguns dos grandes filmes passados aqui acabam
sendo chances únicas também (e aí está o problema – não termos
mostras retrospectivas fora destes meses), mas são filmes que
estão aí no cânone, já bem designados em seus papéis, enquanto,
no que se refere à contemporaneidade, existe a sensação de que
estamos “decidindo” agora o que ficará ou não – e nesse sentido
nosso papel como críticos hoje acaba sendo mais essencial com
estes filmes. Tanto este sentimento é importante para mim que,
desde alguns anos, quando o Festival começou a apostar mais na
Première Brasil e a tornou a mais importante seção competitiva
de filmes brasileiros do calendário nacional, eu tenho privilegiado
muito mais os filmes nacionais na programação – porque ali existe
esta emoção de estar vendo as “primeiras exibições” de alguns
filmes, e descobrindo em primeira mão qual papel eles representam
no cinema de hoje.
O segundo motivo é absolutamente pessoal: na minha
(pequena, o que já significa algo) coleção de DVDs, 85% são de
filmes feitos dos anos 70 para cá - e 65% são dos anos 90 para
cá. Ou seja: o cinema que mais mexe comigo é o cinema moderno
(usando o conceito mais comum do que isso significa), sem dúvida
nenhuma. Um dos motivos para isso é que, em muito do cinema clássico
eu reconheço a excelência, mas acho difícil me relacionar com
ele fora do aspecto histórico (me refiro ao fato de que aqueles
filmes vistos hoje possuem uma relevância, mas nem sempre carregam
o choque que causaram na época do seu lançamento – domesticados
até mesmo pelo renome). Claro que há exceções de todos os tipos
nesta generalização, mas o inegável é que, se preciso optar, meu
olhar se volta mais para o nem tão consagrado que é feito hoje
do que para o já categorizado feito ontem – embora ideal mesmo
fosse não precisar escolher, como na programação anual de cinema
de uma cidade como Paris.
Por isso mesmo, nunca sigo muito de perto as retrospectivas
dos festivais – e esse ano não foi diferente. Até programei para
ver filmes de Visconti, mas várias vezes foram eles que eu acabei
decidindo perder em cima da hora (o mesmo tinha feito, aliás,
com Jodorowsky em Cannes – que acabei conseguindo ver aqui). Ainda
bem que na repescagem depois do Festival, só queria ver os filmes
de Visconti, e com isso consegui não perder os filmes (vários
em cópias realmente belíssimas) sem violentar este meu olhar durante
o Festival.
- O fator “preconceito”
Preconceitos são mais do que necessários para
se programar num festival de grande porte. Já falei sobre alguns
autores (embora nestes casos, sejam pós-conceitos sobre o artista),
mas além disso há certas cinematografias nacionais que eu realmente
não me empenho muito em seguir, para além de recomendações muito
específicas (caso dos países escandinavos, do cinema alemão, do
cinema espanhol). Curiosamente, o Festival do Rio conseguiu escolher
todos estes países para focos em anos anteriores, me economizando
um bom tempo na programação – e este ano foi a mesma coisa, com
o cinema canadense.
Mas, o forte no Festival mesmo, em termos de preconceitos,
são algumas das suas mostras: Mundo Gay, por exemplo – quase sempre
incluam-me fora desta. Não pelo preconceito que pareça óbvio,
mas sim porque não só a mostra em si é preconceituosa (afinal,
o que é o “cinema gay”?), como principalmente pelo tipo de filme
que costuma ser selecionado para ela (mais preocupados em serem
gays do que em serem cinema), assim como acontece com a mostra
Fronteiras (filmes mais preocupados em terem temas relevantes
do que cinema relevante). Com a Première Latina, muito cuidado
deve ser seguido (o grande número de filmes selecionados geralmente
não equivale ao que se produz de interessante no continente).
E as mostras trash então, tô fora (bye bye sci-fi
mexicano).
Claro que os quatro fatores acima podem somente
demonstrar que eu estou ficando velho, rabugento e impaciente.
É possível – embora improvável, já que eu sempre fui assim, desde
bem mais novo. Mas, o que me parece significar de fato é que o
excesso de anos de Festival foi gastando um pouco aquela crença
de que atrás de cada filme naquela lista poderia estar o segredo
do cinema de hoje e do futuro. Hoje, não é difícil escapar das
armadilhas, e dar o devido valor a um respiro entre os filmes
para pensar um pouco mais em algum deles, para se alimentar ou
ver os amigos, ou para trabalhar na revista. E, ainda, ter a certeza
de que uma revisão de Juventude em Marcha ou de Volver
é bem mais importante do que a correria entre os filmes “inéditos”.
E é assim, com estas escolhas do que não ver, que se faz o festival
que vemos e que molda nosso olhar para o cinema do mundo hoje.
editoria@revistacinetica.com.br
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