Film Socialisme, de Jean-Luc
Godard (Suíça, 2010)
por Fábio Andrade
À frente
Se existe uma constante possivelmente identificável na
carreira de Jean-Luc Godard, ela provavelmente é a autocrítica.
Em suas familiares rupturas consigo mesmo, em seus vários
engajamentos de momento, Godard é um dos poucos diretores
que parece estar sempre à frente - não exatamente
de seus pares, da crítica, da História ou de seus
próprios filmes, mas à frente de si mesmo. Nesse
sentido, não é de se espantar que Film Socialisme,
mesmo quando ecoante de sua obra pós (e incluindo) História(s)
do Cinema, seja a princípio bastante diferente de
seus trabalhos mais recentes. Pois se História(s) do
Cinema, Elogio ao Amor e Nossa Música
dobravam os estilhaços da História e dos próprios
filmes a um raciocínio particular do diretor (por vezes
explícito em sua própria presença em cena,
de corpo ou voz), em Film Socialisme não parece
haver mastermind possível. Restam somente os cacos,
as frases, os pensamentos, as línguas e uma multiplicidade
de olhares que são organizados em sua própria polifonia.
Em
primeiro lugar, há a água -; algo que o filme caracteriza,
de imediato, como o que há de comum. Deslizando em sua
superfície, um navio - ou, mais alegoricamente, uma arca.
Neste espaço, o que vemos é justamente a diluição
de uma ordem possível na explosão de olhares, materiais
e ruídos. Godard parece voltar à História,
mas se no final da década de 90 o vídeo era o que
possibilitava o remonte da memória pessoal na escritura
póstuma de quem observa seu corpo estando fora dele (História(s)
do Cinema), vinte anos depois é o mesmo vídeo
que se torna uma aberração pós-deleuzeana,
inviabilizando qualquer possibilidade de ordem ou catalogação.
Se antes predominavam as fusões, a construção
de sentido pela justaposição dos opostos, agora
existe apenas a harmonia do choque, a possibilidade de cortar
de uma versão de navio de "What a Feeling", de
Irene Cara, para um tema de violinos que começa exatamente
na nota suprimida da canção, e gera uma espécie
de continuidade descontínua. A escritura da História
mudou. Ela agora vem repleta de dropouts de vídeo,
com o áudio saturado e a imagem pixelada dos filminhosdas
câmeras fotográficas e dos celulares. Ela evapora
miando junto aos gatos em uma tela de computador, mas o miado
permanece o mesmo desde o Egito antigo. A História existe,
mas seu parêntese plural hoje se faria redundante.
O primeiro arco de Film Socialisme, portanto, é
justamente o arco do caos. Godard cria para o filme uma estrutura
que está ligada à filosofia, mas não exatamente
por uma modalidade de prática filosófica (como os
diálogos platônicos de Non, ou a Vã Glória
de Matar, de Manoel de Oliveira) ou o confronto filosófico
com o mistério das coisas (como nos filmes de Terrence
Malick), mas sim um filme que reproduz o próprio ritmo
e desenho do pensamento. Film Socialisme encadeia idéias
- inúmeras, a todo segundo, por vezes convivendo e se entrecruzando
no tratamento individual das caixas de som laterais - sem deixar
traços de seus encadeamentos. Tem-se uma impressão
do todo e possibilidades infinitas de mergulho em cada pequena
parte. É um filme que, nesse sentido, convida o espectador
a pensar separado, a partir dele, sem com isso alijá-lo.
Flutuar é parte do processo. Há um único
barco, mas dentro dele há diversos personagens que, mesmo
quando em relação, travam jornadas pessoais e desconectadas.
Por outro lado, há uma mudança de atitude. Pois
se Godard é marcado pela autocrítica, isso também
nos diz que seus filmes estão sempre a pensar qual seria
o lugar do artista em cada momento da História. Uma imagem
recorrente nesta primeira parte mostra, em contra-plongeé
sub aquático, um grupo de peixes que, indistintos em um
mesmo tom de azul silhuetado, parece formar uma única massa
de matéria, se reunindo em uma única cor que confunde
os limites de cada corpo e anula o indivíduo no grupo.
Troca-se o anacronismo personalíssimo da insistência
pela janela 1:1.37 (janela que, por ser "morta", trazia
na projeção um ruído inevitável e
voluntário à própria idéia de autoria
nos filmes de Godard - como vemos neste muito ilustrativo artigo
de David Bordwell) pelo vídeo no hoje ordinário
16:9 - não só uma mudança de postura de quem
enquadra, mas também de o que se enquadra: um rosto não
está mais só, tomando todo o plano; em seu entorno
há o mundo, o coletivo, a paisagem. É preciso que
eles - rosto e entorno - se relacionem. Uma das personagens do
filme diz, profeticamente e muito ao gosto das inversões
de sentido que Godard anda a fazer em entrevistas recentes, que
o digital teria acabado com qualquer possibilidade de expressão.
E, ao mesmo tempo, temos Godard, filmando em vídeo digital,
reunindo pequenos pedaços dessa tal inexpressão
múltipla, servindo-se de John Ford e de vídeos achados
na internet de maneira igual e indistinta. Uma garota fotografa
a câmera diretamente, e um segundo depois sua imagem é
congelada em uma fotografia, apenas ressaltando a diferença
inevitável entre um olhar e outro, e outro, e mais outro.
Seria Film Socialisme uma tragédia sobre sua própria
impossibilidade?
É
necessário descer do barco. Não abandoná-lo
ou ignorar sua existência, mas simplesmente ficar os dedos
dos pés na terra de um momento. O segundo arco de Film
Socialisme se passa em um lar, uma casinha junto a um posto
de gasolina, acompanhando uma família que é assediada
por uma equipe de televisão. Na porta, há um guardião:
um garoto louro que veste a foice e o martelo e esbanja insolência,
lembrando as crianças dos filmes de Yasujiro Ozu, e que
desferirá golpes com uma falsa espada toda vez que a equipe
de televisão tentar se aproximar (de forma sempre invasiva)
daquela privacidade. Um garoto que respira arte e musicalidade:
ele sopra o canudo no leite no tempo exato em que o saxofone entra
na música que toca ao fundo; rege uma orquestra invisível
com sua falsa espada; senta à escada com tela e pincel,
para pintar "uma paisagem de outrora". A cinegrafista
se aproxima - sem a câmera - e se surpreende: "É
um Renoir!". O garoto lhe responde: "Há muitas
coisas bonitas que Renoir não enxergou". Vemos o quadro
que o garoto pinta mas as cores do vídeo são saturadas
a limites de estilização sem paralelo em todo o
filme. Se há um lugar para o artista no mundo hoje, ele
parece estar todo contido nesta cena e neste personagem: a necessidade
de se preservar o íntimo, de não se deixar diluir
na água comum, de entender o que era a arte antes de se
descobrir artista, e de nunca se esquecer que há muitas
coisas bonitas que Renoir - por limitações de tempo,
espaço, mas principalmente de olhar - não enxergou.
Há mundos inteiros ainda não vistos.
Do
indistinto pelo distintíssimo, chega-se ao terceiro e inevitável
arco: as civilizações. Com ela, voltam as fusões,
a possibilidade de se produzir novos sentidos e leituras. O caos
mediado pelo artista se torna novamente História. Em dado
momento de Film Socialisme, ouve-se em voz over que
Hollywood era chamada de Mecca do cinema por conseguir que um
grande número de pessoas se voltasse, em um mesmo momento,
todos para um mesmo lugar: a tela. O filme, porém, é
o olhar de um indivíduo. O cinema - ou a arte - permanece
como a possibilidade de resistência última do sujeito,
mesmo que este sujeito nos chegue aos cacos, aos estilhaços
de quem imprime um mundo a voar diante dos olhos (ou, como um
filme-pensamento, dentro da cabeça). A tela é uma
só. O filme (no singular) é o último socialismo
(no sentido político corriqueiro, mas também no
"social" que lhe é radical) possível:
o último momento de fé, de uma anulação
silenciosa e ritualística no coletivo, mas ao mesmo tempo
de um magnetismo absolutamente ativo entre dois olhares: a pessoa
que olha pra tela e a tela que olha de volta. Godard, autocrítico
de vocação, firma em Film Socialisme um
pacto no qual os aforismos e os fragmentos categóricos
se sabem apenas um possível começo de conversas.
E, das conversas, algo de gigantesco pode surgir.
Outubro de 2010
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