Fim
da Linha, de Gustavo Steinberg (Brasil, 2008) por
Cléber Eduardo
O desprezoFica bem claro que Fim
da Linha, estréia na direção de Gustavo Steinberg, dá de ombros para o cinema.
Não se trata de recusar o filme por se preocupar em construir uma visão de sociedade
sem se colocar como uma questão estética, pois nenhum filme tem a tarefa de se
problematizar como linguagem. Mas, quando a linguagem deixa de ser apenas uma
“não-questão” para a narrativa e é empregada como transmissão tatibitati de idéias
sobre qualquer universo, percebemos a troca da expressão pela exposição. Em vez
de experiência, proporcionada pela transformação de visão em olhar, de idéia em
forma, temos exercício demonstrativo. O cinema deixa de ser a provocação por evidências
para se reduzir a um guia de uma conclusão qualquer. Não se afirma com isso que
demonstração é igual a cineminha. Afirma-se que uma demonstração, se deseja somente
ser demonstração, prescinde do cinema. Todas
as situações e diálogos de Fim da Linha, mesmo colocados à mostra por procedimentos
de cinema, parecem ignorar seu meio. Só há interesse no sentido produzido e não
na produção do sentido. Fim da Linha é uma obra cujos sons e imagens não
ultrapassam os limites da escrita: seus pontos de vistas e suas organizações de
sintomas se resolvem sem se levar em conta a experiência da filmagem. Como? Ligando
a câmera e colocando os atores diante dela, sem aparente preocupação com a forma
dos corpos, dos rostos e dos lugares entrarem em quadro, porque, no fundo, interessa
somente as linhas gerais de uma visão sobre seu entorno. O filme abdica de ser
a expressão de um olhar para se tornar olhar sem expressão, de alguém com um pensamento
sobre o mundo fora da tela e sem pensamento para transformar a tela em um mundo.
A fragilidade cinematográfica na demonstração da visão de mundo é mais evidente
quando se coloca mais de um corpo no mesmo enquadramento. Por
meio de personagens ilustrativos de diferentes situações sociais, colocados em
um contexto de circulação de dinheiro em São Paulo, somos apresentados a uma tipologia
urbana tratada em conjunto como sintoma. Na verdade, como epidemia ou metástase,
doenças ameaçadoras de uma ordem moral, responsáveis por sua falácia, falência,
pela completa desregulação. Nesse sentido, por encarar a sociedade urbana como
um espaço de destroços de seu projeto, Fim da Linha une-se a Tropa de
Elite, de José Padilha, mas também se aproxima de Polaróides Urbanas,
de Miguel Falabella, ambos filmes com o mesmo desejo de levantar sinais de decadência
das cidades (no caso, o Rio), seja expressos em suas vigas (Tropa), seja
na própria intimidade das pessoas (Polaróides). A
diferença fundamental é que, assim como Polaróides e diferentemente de
Tropa, Fim da Linha recusa o realismo, assumindo uma “representação
de índices da realidade”, sem buscar um efeito de real. Pelo contário: o filme
se coloca o tempo todo como uma mediação com ponto de vista. No começo, somos
colocados em contato com a história de um mafioso italiano, um dos componentes
do capitalismo à brasileira, com seu pé na ilegalidade, mas também integrante
de uma rede global, da qual é um dos vírus no mercado financeiro. O que o percurso
do mafioso, mostrado em diferentes ocasiões narrativas como uma frente paralela
em registro de cinejornal biográfico, tem a ver com o restante? Em primeiro lugar,
conecta a corrupção brasileira com a do velho mundo, lembrando-nos que, como povo
e sociedade, temos parte com os europeus. Portanto, se existe uma decadência à
brasileira de uma plataforma social, em alguma medida européia, ela não é original,
mas derivada de um processo histórico com especificidades e traços compartilháveis
com outros países. Essas imagens da narrativa paralela, além
de colocar as coisas em perspectiva histórica e global, nos vinculam a algo fora
da ficção. Temos lá o efeito “imagem de arquivo” a nos fundir representação e
realidade, ficção e História, ao menos como pacto narrativo, de modo a deixar
claro que, embora seja uma representação assumida como tal, o tom pedagógico ilustrativo
exemplifica, na soma das situações e tipos, as variações de comportamentos sintomáticos
da sociedade urbana. Estamos em um filme sobre a realidade, que o tempo todo nos
lembra que aquele é um filme sobre a realidade – menos uma realidade como totalidade,
mais uma realidade como mundo exterior a diegese, que usa o quadro como explanação,
como índices de sociedade postos em relação. Que
índices são esses? Temos lá algumas marcas de absurdo e de patético, com explícita
disposição de ridicularizar o funcionamento da sociedade brasileira, com uma disposição
crítica não sem enfado. O primeiro sinal desse absurdo da sem vergonhice nacional
está na reivindicação dos índios, que começam a cobrar pela dança da chuva, ameaçando
fazer greve e gerar apagões. É em cima de absurdos patéticos, caricatos, que fazem
pensar num Casseta e Planeta em versão ranzinza, que o filme centrará seu
enfoque, sempre em tom demonstrativo, com corrosividade cínica, esquetes em alguma
medida amarrados à noção de palco, uma continuidade da chanchada em versão mais
explicitamente crítica (mais explicitamente, porque, como defendia Jean Claude
Bernardet, a chanchada tinha verve crítica), porém sem a contundência e gravidade
de um Sergio Bianchi – diretor para quem Steinberg escreveu o roteiro de Cronicamente
Inviável, e que é certamente uma das matrizes de Fim de Linha. A
galeria de tipos exemplares de um estado de coisas nacional abarca o repórter
desempregado com projetos idealistas de telejornalismo, a mulher empenhada em
economizar miúdos para comprar seu vestidinho, o político com dinheiro sujo para
lavar e o filho dele disposto a jogar essa grana ilícita pela janela. Não esqueçamos
ainda um táxi que conecta parte desses tipos, assim como um mendigo e uma mendiga
que estão no epicentro da circulação de dinheiro. Se a princípio Leonardo Medeiros
é a voz do saber como repórter fracassado e idealista, sem o cinismo do sociólogo
de Cronicamente Inviável, que fazia mais ou menos a mesma função, logo
nos damos conta de que todos têm alguma verdade e definições na ponta da língua.
Em última instancia, Steinberg está interessado na colcha de discursos, de mentalidades,
de componente de um caldo cultural de século 21, que guarda vínculos com um processo
histórico de corrupção, falácia ética e desregulação na construção do país. Fim
da Linha não deixa de ser uma guerra entre lógicas de interpretação de nosso
tempo mediadas por uma instância autoral com enorme desprezo por tudo aquilo e
enorme fastio pela linguagem cinematográfica. Talvez tenha sido a forma encontrada
pelo filme para se igualar a seu universo enfocado: o auto-desprezo. Março
de 2008
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