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Fim da Picada, de Christian Saghaard (Brasil, 2008) por
Paulo Santos Lima Os
boçais de hoje
Christian Saghaard, curtametragista
egresso do curso de cinema da ECA ,com obra coerente com um universo estético
primo dos HQs, filmes de terror, almanaques e certas apropriações da cultura de
massa (inclusive a religião, e aqui me permito colocar esse tema como “mass cult”),
estréia na direção de longa com um trabalho com ecos longínquos ao de Rogério
Sganzerla – os “HQs” mencionados acima informam-nos disso. A história, absurda,
começa em 1850, nudez e corpos filmados com um despudor freado, e trata de um
personagem que, através de uma Exu que manga dele, é transportado para a São Paulo
do século 21. O caos domina a cidade, como a São Paulo de O Bandido da Luz
Vermelha, e o filme nos apresentará uma série de boçais, de ladrões a dondocas
alienadas. “Boçais”, um termo caro ao cinema de Rogério Sganzerla,
que dá conta de um mundo em perigo, de um desbarrancamento do homem. Uma estética
para isso, com extremo requinte e intenção fotográfica na mesma medida em que
o acaso da luz estourada e da sujeira da locação tingia o enquadramento, era algo
emulado ou coincidente em outros filmes realizados naqueles anos (os de Ozualdo
Candeias, de certo modo, mas também alguns tantos outros). Sendo um realizador
de hoje, Christian Saghaard responde ao mundo atual e dispõe daquilo que o mundo
possui agora. A estética do bom acabamento, essa que parece a pauta de uma fábrica
de cristais, é utilizada em O Fim da Picada. Com bastante cuidado e parcimônia,
claro, e é isso que mantém expressivas as opções tomadas pelo diretor (que conta,
aqui, com o habilidoso André Francioli na montagem). O desfoco, o slow motion
(utilizado, por exemplo, numa ótima seqüência que mostra pequenas crianças lavando
um carro sujo com sangue juvenil como em um anúncio de sabão em pó), uma câmera
inquieta, enfim, estamos num jogo feroz que herda o cinema cáustico dos anos 60/70,
releituras à brasileira de filmes de demônio e uma mordacidade bastante singular. Jogo
crucial, também, na utilização de um humor proto-chanchadesco que difere bastante
do cinema de Sganzerla, que expunha ainda mais o mal-estar geral da nação. O lúdico,
no caso, estava na imagem, no filme, no cinema, enquanto o horror estaria naquilo
que as imagens reproduziam, naquilo da qual elas eram resultantes (o nosso mundo,
o Brasil). O Fim da Picada, hoje, filme imperfeito e bastante político,
dilui-se no enorme fluxo de imagens, contamina-se com a tal demanda de um certo
tipo de cinema “de qualidade”, o que talvez o assassine um pouco. Mas O Fim
da Picada é, como explicita o título, o fim de um mundo que já vem morrendo
há tempos. É, também, o fim do cinema. E a reação da platéia na sessão
em que foi visto o filme, bastante resistente, talvez responda sobre as qualidades
que há neste primeiro longa de Christian Saghaard, que ao não adotar uma estética
mais radical diz muito sobre o modelo a partir do qual os olhos contemporâneos
estão formatados. Junho de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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