O
Fim do Sem Fim, de Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi
(Brasil, 2001) por Paulo Santos Lima
Quando
o fim não tem a ver com os meios O Fim do Sem Fim
é desses filmes cujo fim e princípio é a experiência visual. Afinal, está claro
o projeto de cinema de seus cineastas: Bambozzi tem uma grande obra em curtas
e vídeos que ilustra bem um cinema preocupado com o sangue da imagem, seus poros,
grãos, placas de pixels digitais, tudo isso criando sentidos sensoriais; algo
que Cao Guimarães leva ao sublime no gusvansantiano (Last Days, no caso)
Andarilho. O Fim do Sem Fim não carrega, portanto, um “valor cultural”:
ele simplesmente é um objeto da cultura de seus realizadores.
Longe de
cumprir um papel revelatório (algo, em geral, típico dos documentários) ou se
“justificar” por algo externo a ele (como adaptar um clássico, ser uma superprodução,
ter feito avalanches em aplausos mundo afora), o filme não segue a pauta temática
e narrativa endossada pelas comissões e nem é assinado por nomes conhecidos (a
trinca de diretores deste documentário é reconhecida por seu valioso trabalho
estético - mas, claro, não é mainstream). Não à toa, captado no final dos
anos 90 e finalizado em 2000-2001, O Fim do Sem Fim só estréia agora (e,
mais grave, é o primeiro longa de Cao Guimarães lançado comercialmente). Por isso
mesmo, está claro que a escolha por veicular o longa na mídia digital se dá,
sobretudo, por um motivo econômico - e a projeção digital de O Fim do sem Fim
é algo a ser mencionado: captado em 16mm, 8mm e DV, é certo que o resultado seria
outro se exibido na tela de cinema em suporte de 35mm, como chegou a ser em alguns
festivais há mais de cinco anos. Seu
tema, dramático, parece convidar para os exercícios sociológico-funcionais o desaparecimento
de certos ofícios no Brasil, como o dos fotógrafos lambe-lambe ou das parteiras.
Mas a idéia não é fazer um painel antropológico dos entrevistados, tampouco denunciar
algo ou encontrar o processo histórico disso. Os trabalhadores, mais que objetos
utilizados no filme (existe documentário que não faça, propositadamente ou não,
de seus entrevistados objetos, uma vez que são presenças concretas na imagem?),
são parte orgânica de uma construção bem próxima da videoarte. Nem mesmo os ofícios
são, assim, algo de valor material. São, antes, modos de vida, registrados num
emaranhado de câmera observacional com imagens incertas, texturas múltiplas, planos
que, no fluxo, criam uma dialética puramente visual-existencial. Se
algumas vezes abstrações, pelo aglomerado que fazem com tantas outras imagens
do longa (imagens definidas, vale ressaltar, como livros, faróis, panelas), em
tempo integral as falas dos personagens são soberanas, firmes, cada um falando
sobre si, sem totalizações ou metonímias, numa oralidade que cria um discurso
paralelo, um rio caudaloso de cultura. Não a cultura do index, mas uma cultura
fluida, além-corpo, além-discurso oficial, nascida das esquinas do mundo (Brasil),
e que se faz bela pelo que foge da idéia de “função” ou representação. É
o indivíduo quem ganha espaço aqui, mesmo que vampirizado pelo projeto estético
de Beto Guimarães, Bambozzi e Cao. Seu estar no mundo é mais valioso, assim como
sua profissão – pois, na real, a beleza está no “fazer”, não no “isso” ou “aquilo”.
Ou na imagem que esses fazeres produzem, como a luz do lanterninha ou o cuidado
que o faroleiro tem com sua torre (e o plano pictórico resultante dele debruçado
em sua “obra de arte”, olhando o mundo das águas abaixo). Tudo isso, claro, olhando
para a morte dessas experiências, porque, nessa resistência cheia de rugas, peles
amassadas pelo tempo, há a consciência de uma clandestinidade, sabedores que a
força centrífuga lhes é algo bastante implacável, num processo histórico que não
é visualizado pelo filme, mas é percebido pelo seus resultados, além de longe
da escritura enciclopédica. Pouco importa, assim, registrar
as profissões, como a de tocador de sinos, fotógrafo lambe-lambe, parteira, relojoeiro,
ascensorista etc. A presença como imagem é o que interessa, que vem aos nossos
olhos como um grito feroz de resistência desses trabalhadores. Daí, em meio a
esses e outros, há aquele que começa e termina o filme, e surge em outros momentos
generosos: Paulo Marques de Oliveira, cujo ofício é... “mestre dos mestres”. Figura
impactante, com seu bigode, expressividade e ar galante em sua vestimenta, Paulo
Marques é a mais gritante performance do filme – mas sua sabedoria, que ele próprio
valoriza, é anti-canônica. Funde-se poesia com ciência e religião, uma papelada
manuscrita que é meio livro das verdades, Bíblia e projeto herzoguiano. Paulo
Marques é a prova de que Fim do se Fim é anti-marxista, pois o trabalho,
aqui, cumpre uma função espiritual, abstrata, e não material, ou produtiva, pois
estamos falando de profissões no bico do corvo, na UTI da história. E este “mestre
dos mestres” também comprova a grande contradição desconfortável desse documentário,
que parte de um ponto concreto (o registro factual das profissões cujo processo
histórico as sepultou) para chegar a uma abstração ambígua, sem raias sociológicas,
com informações salpicadas e a incerteza sobre o que a fita acha desses seres.
Parece uma traição a eles, pois eles respondem a um fluxo
imagético. Mas daí temos suas falas, mais límpidas, e mesmo a presença na tela,
o que lhes dá vida. Louvável, mesmo que só agora, o distribuidor lançar este filme.
Porque, mesmo que “traída” pela sinopse, sua platéia não será aplainada pelas
certezas sociológicas, essas que ainda hoje pautam boa parte dos documentários
brasileiros e que podem ser uma herança torta, mal-utilizada, do Cinema Novo.
Que venha a seguir Andarilho, um belo herdeiro dessa experiência entre
amigos de mesma crença estilística, feita no calor da virada para o século XXI. editoria@revistacinetica.com.br
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