Fim dos Tempos (The Happening),
de M. Night Shyamalan (EUA/Índia, 2008)
por Fábio Andrade
O fim e o princípio De tempos em
tempos, topamos com algum realizador cinematográfico cujo maior interesse parece
ser o mergulho em seu próprio universo diegético, fazendo da perspectiva macro
de sua obra o trabalho de pequenas variações neste mundo primeiro, nessa estrutura-mãe.
No cinema contemporâneo, é o caso de nomes como Tsai Ming-liang, Wes Anderson,
Hong Sang-soo, Apichatpong Weerasethakul e Eric Rohmer, por exemplo – diretores
com projetos de cinema tão singulares, e de consciência estrutural tão aguda,
que são comumente acusados de realizarem sempre o mesmo filme. Embora esse desejo
de se embrenhar nos limites de um único universo ficcional passe, invariavelmente,
pela idéia de repetição, ao espectador cabe perceber o que muda, identificando
os pequenos grãos que fazem com que filmes aparentemente tão parecidos continuem
respirando novidade, em movimento que, apesar dos pequenos passos, não cessa.
Por essa lógica, é curioso como, a cada novo filme, M. Night Shyamalan
parece construir sua obra na direção contrária a esse trânsito. Desde O Sexto
Sentido – deixando de lado, aqui, os dois filmes que antecedem sua fase de
assinatura nos créditos – Shyamalan se entrega a projetos de naturezas (narrativa,
estética, referencial, de gênero, de discurso) aparentemente muito diversas, mas
que, ao fim, se inscrevem em um corpus desenhado com pena muito firme,
em estratégias que se repetem e apontam para uma reflexão maior. Fim dos Tempos
não é exceção e, como todo filme de M. Night Shyamalan, parte de uma dupla fruição:
a imediata, que corre paralela ao desenrolar da película; e outra pós, onde o
filme se acomoda dentro do projeto de cinema do realizador, e passa a espelhar
questões que giram em torno de uma mesma chave. Seus filmes costumam ser universos
fechados e independentes, mas o encantamento surge não da percepção do que muda,
mas sim do que, apesar das aparências, permanece o mesmo. Na
primeira seqüência de Fim dos Tempos, um diálogo entre duas jovens no Central
Park é cortado por um grito que explode fora de quadro. Após o grito, uma das
garotas, com um livro na mão, diz não se lembrar em que página havia interrompido
a leitura. O esquecimento, porém, já havia sido manifestado segundos atrás, logo
antes de ouvirmos o grito. A frase é repetida mais uma vez, para o estranhamento
da outra personagem. Ao olhar em volta, ela percebe que todas as pessoas que passavam
pelo parque estavam, agora, paralisadas. Os animais e as plantas seguem em movimento,
mas as pessoas parecem congeladas no tempo. Olhando para frente, a menina do livro
retira o espeto que prendia seu cabelo e, lentamente, o enfia de ponta em sua
própria jugular. Como em todos os seus filmes, Shyamalan usa o prólogo como uma
espécie de guia de aproximação a tudo que veremos pelo restante da projeção. Narrativamente,
ele nos instaura no estado de exceção que conecta as jornadas individuais de todos
os seus filmes: por motivo desconhecido, todo um grupo de pessoas concentrado
em um mesmo lugar é tomado pelo desejo comum de cometer suicídio. A construção
de cena nos coloca no cinema de gênero bastante familiar, com decupagem que revitaliza
suas convenções narrativas. É preciso, porém, atenção para
outros detalhes: se existe uma constante no cinema de Shyamalan, é que o gênero
é sempre um primeiro passo para se chegar à problematização da virtude no mundo
contemporâneo – algo que o torna muito próximo de Tsai Ming-liang. Embora seus
filmes não tenham pretensão ou desejo de resolver questões imediatas, é bastante
claro como eles respondem ao estado de coisas em que se inserem. Desde A Vila,
portanto, Shyamalan vem pensando as reações da sociedade aos acontecimentos de
11 de Setembro de 2001, mas sempre por fora da política palaciana, interessado,
na verdade, na sobrevivência das virtudes após o horror. E, em Fim dos Tempos,
essa preocupação se reflete no primeiro sintoma de estranhamento: a repetição
inconsciente de uma mesma fala. Assim como A Vila se abria como uma reflexão
a partir do visível, e A Dama Na Água pensava o ato de narrar, Fim dos
Tempos é, ao fim e ao cabo, um filme sobre a fala como instrumento mais evidente
de comunicação com o mundo. Pois,
além do enfraquecimento inicial dessa faculdade como prenúncio da crise, todo
o decorrer de Fim dos Tempos é construído como reflexo da fala, da comunicação.
Essa preocupação fica expressa estilisticamente nos tons acima nas interpretações
dos atores, mas também no próprio transcorrer da narrativa. Desde o primeiríssimo
momento, somos bombardeados com toda sorte de informações cruzadas pelos meios
de comunicação em tela (a onipresença das televisões, dos rádios e, sobretudo,
dos telefones celulares), enquanto, entre as personagens, os pequenos conflitos
que as separam são, também, de natureza comunicativa. O excesso de informação
– como recepção ou busca – vem encobrir os problemas que separam as pessoas: a
menina que cochicha sempre que tem algo de íntimo a dizer, a oratória professoral
de Elliot (Mark Whalberg) que vem preencher os silêncios do casamento com Alma
(nome-piscadela à esposa de Alfred Hitchcock, interpretada por Zooey Deschanel),
o anel que muda de cor para expressar o interior calado às palavras, o criador
que conversa com suas plantas, mas espia os vizinhos com um binóculo. Aos
poucos, a existência em Fim dos Tempos é aproximada a um personagem isolado
de A Dama na Água: o sujeito que passa o dia em casa, recebendo notícias
sobre a guerra pela televisão. O que parece atormentar Shyamalan é a percepção
de que, se existe algo capaz de colocar o mundo em risco, é justamente a falta
de comunicação, e que ela se tornara mais aguda após o 11 de Setembro. É muito
ilustrativo, nesse sentido, o veículo escolhido pelo diretor como causador do
ataque: onde há excesso de (des)informação e carência de relações, passa-se a
temer as plantas, o vento, o mundo. A idéia, muito propagada por certa parcela
da crítica, de que Fim dos Tempos seria um filme “ecológico” cai logo por
terra, ao menos no sentido mais banal em que o termo vem sendo usado. O que Shyamalan
faz é planificar os níveis de relacionamento, colocando tudo em um mesmo plano:
o homem, a vida, a morte, a natureza, o sobrenatural, a realidade, a ficção. É
essa relação mais aberta com a vida que está desgastada, pois estamos todos enclausurados
em nossos impenetráveis abrigos, percebendo todo o restante como mera plataforma
para a existência do “eu”. A
idéia de ecologia não passa, portanto, pelo simples maltrato ao verde, mas sim
pela perturbação desse equilíbrio maior que é sempre buscado pelo mundo. Filma-se
o vento nas plantas para colocá-las em movimento; para, como faz Apichatpong Weerasethakul
(em herança direta de Lumière, e seu maravilhamento primeiro diante da possibilidade
do cinema de imprimir o movimento das folhas), tornar visível sua vida, sua pulsação.
Nesse sentido, é essencial a cena em que a trinca de personagens principais se
abriga na casa de uma velha eremita – alheia a toda sorte de acontecimento em
seu próprio confinamento. Essencial, pois Shyamalan desmontará o isolamento como
porto-seguro: é preciso, sobretudo, estar em sintonia com o mundo. E
isso se dá, em Fim dos Tempos, justamente pela fala. Não à toa, o que previne
a morte das personagens principais (lembremos, aqui, dos garotos que são mortos
por tentarem arrombar uma porta que não lhes fora aberta) é justamente a restauração
da essência da comunicação: fazendo uso de um tubo construído pelos escravos para
romper a barreira entre a senzala e a casa principal, Elliot e Alma – o casal
calado que esquecera a cor do amor – vão, enfim, conversar. Conversam sobre quando
se conheceram, lembrando os motivos que uniram suas vidas para, com isso, perceber
que, sendo a morte inevitável, é melhor incorporá-la à vida ao lado de quem amamos.
Quando eles se encontram, em meio à tempestade de vento, somos informados o dia,
hora e local daquele encontro, como acontecia nos momentos de crise. Com
essa simples informação visual, Shyamalan reinterpreta o “acontecimento” de seu
título original, em uma declaração de princípios de inegável contundência. O diretor
realiza, ali, a operação predominante em todo o seu cinema: o resgate da virtude
em seu significado original, aplicada à vida contemporânea. Não à toa, o círculo
se fecha com um retorno ao prólogo: após a restauração da ordem, somos levados
à França, onde a cena de abertura do filme se repetirá. Shyamalan implode a possibilidade
de vinculação política imediata ao seu cinema, pensando que a vida pós-11 de Setembro
não é uma questão estratégica, mas sim um estado de nervos que – como na Guerra
Fria – faz sombra em todo o planeta. Assim como sua construção de cena sempre
privilegia a sugestão do extra-campo (pensemos no já antológico travelling que
acompanha a arma que passa de mão em mão, destituindo a morte de um rosto – à
maneira da fragmentação pelas mãos percebida por Deleuze no Bresson de Pickpocket),
seu discurso abre para o contínuo do espectador, para as luzes que se acendem
ao fim da sessão. Basicamente porque, em sua crença de um mundo planificado em
que todos os elementos buscam a harmonia, o fim de uma era é sempre o princípio
de uma outra. Junho de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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