A Conquista da Honra (Flags of Our
Fathers), de Clint Eastwood (EUA, 2006) por
Fabio Diaz Camarneiro
Sangue em calda de sorvete Há duas
guerras em A conquista da honra: uma, em Iwo Jima; a outra, no coração
da sociedade do espetáculo. Na primeira, combate-se com metralhadoras e baionetas;
na outra, com slogans, cenários de isopor e imagens — no caso, a famosa
fotografia de Joe Rosenthal: um grupo de soldados hasteando uma bandeira norte-americana.
Três homens, que hastearam a bandeira e sobreviveram, inadvertidamente se transformam
em personagens de uma grande farsa da história. Munidos com um dos armamentos
mais devastadores da indústria cultural (o melodrama), eles saem em turnê pelos
EUA, tentando arrecadar bônus de guerra. Trata-se de um enfermeiro, um indígena
e um soldado. Os bons e velhos “homens comuns” do american way of life,
que simplesmente estavam no lugar certo na hora certa. Os
soldados-atores têm diferentes comportamentos: René Gagnon logo se deslumbra com
o assédio da imprensa, a fama repentina, os sorrisos das mulheres, os tapinhas
nas costas. É talvez ingênuo demais para perceber o que se passa nos bastidores,
para entender que ele é apenas um personagem menor naquele drama. Ira Hayes, descendente
de indígenas, não consegue suportar a idéia de uma platéia que o aplaude num instante
para logo em seguida discriminá-lo. Único autóctone entre os heróis, ele não se
reconhece como americano, mas como herdeiro de uma raça de perdedores. Há aqui
uma ironia cruel: foi a derrota para os colonizadores europeus que lhe retirou
o direito de ser “americano”. Talvez por isso o grande incômodo com a lembrança
dos companheiros mortos em Iwo Jima: não importa com que uniforme Ira lute, parece
intuir que sempre estará do lado dos derrotados. Mesmo fazendo parte do exército
vencedor, ele termina o filme derrotado. Para ele, o palco não é um lugar de fascínio,
mas uma questão de sobrevivência: ruim ali, pior em outro lugar. O último soldado-ator
é resignado: John Bradley, um enfermeiro que conheceu de perto as atrocidades
da guerra e que percebe o absurdo de um sorvete com calda de morango representar,
na verdade, o sangue que escorre sobre o sonho americano. Parece ser o único a
perceber que a morte se esconde a todo custo sob as luzes do espetáculo. A
famosa imagem da bandeira americana e a proximidade com os heróis fazem o público
tirar dinheiro do bolso e, afinal, financiar a guerra. Multidões correm para ver
os “heróis”, apertar suas mãos, levar para casa um souvenir. Enquanto isso, nos
campos de batalha, os soldados estão amedrontados, abandonados à sua sorte: há
desespero, insegurança, saudade da segurança do lar. Mas há também o companheirismo
animando os combatentes. Como se apenas distantes dos EUA os soldados se reconhecessem
como “americanos”; como se apenas no embevecimento do sonho as platéias se sentissem
“vivas”. Clint Eastwood tenta separar o joio do trigo e buscar alguma “essência”,
alguma “pureza”. Os dois campos de batalha por vezes se confundem, como quando
o estouro de um fogo de artifício ecoa em um bombardeio. Mas isso é apenas aparência,
porque o lugar da “essência” não são os salões do governo ou os cenários de isopor
que recriam Iwo Jima. O respeito mútuo e a solidariedade estão presentes na guerra. Eastwood
não é resignado como o enfermeiro, apenas conciliador. Há um acordo amargo entre
espetáculo e barbárie, que remete a O homem que matou o facínora, de John
Ford: se a lenda tornou-se verdade, publique-se a lenda. Assim como Ford, Eastwood
é um nacionalista. Ele quer que o verdadeiro herói americano seja celebrado: não
aqueles cujos nomes ficaram nos livros de História (um franzino presidente Truman),
mas os homens comuns, os representantes do american way of life que pereceram
nos campos de batalha. Em A conquista da honra, o verdadeiro herói é o
sargento Mike, que coloca seus companheiros de uniforme acima de tudo. Eastwood
não lamenta que a encenação seja ridícula; lamenta que não seja dado o devido
mérito ao falecido Mike, o melhor homem que o soldado Ira Hayes já conhecera. Apesar
do horror, é apenas na guerra que o verdadeiro companheirismo encontra espaço;
é apenas na guerra que o melhor de cada homem vem à tona. Essa contradição, na
verdade, funciona mais a favor do que contra o filme. São inúmeras as semelhanças
entre a histeria provocada pelos soldados-atores de A conquista da honra
e a idolatria no star system americano. A barbárie se transforma em combustível
da indústria cultural, que transforma sangue e carne humana num confeito colorido,
uma calda de sorvete de morango feita para deliciar o público. Eastwood critica
a sociedade do espetáculo ao mesmo tempo em que a ela sucumbe. Os imperdoáveis,
a um só tempo, já era libelo contra a violência e espetáculo da mesma violência.
Em A conquista da honra, ao invés do panfleto pacifista, encontramos a
grandiloqüência do Steven Spielberg de O resgate do soldado Ryan (Spielberg
foi um dos produtores, ao lado do próprio Eastwood, de A conquista da honra). Eis
a contradição do sonho americano: após as atrocidades, transforma-se o sangue
derramado em uma espécie de confeito mágico, com o inebriante sabor do esquecimento.
No final das contas, a vida do nosso enfermeiro resignado encontrou a “normalidade”:
família, emprego, casa no subúrbio, um final redentor e lacrimoso. A vida continua,
a guerra ficou para trás. Garçom, mais calda de morango, por favor.
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