in loco - cobertura do Festival do Rio

Flandres, de Bruno Dumont
(França, 2006)
por Felipe Bragança

Uma vaca é um bicho sem imaginação

Bruno Dumont não filma personagens. Filma bichos sem imaginação. Muito além da noção da contenção psicológica derivada de Bresson, o que se vê em Flandres é um estudo rigoroso desse pan-naturalismo dramatúrgico em que os gestos são decalcados como impulsos medulares ou, como diz a personagem central, “dos nervos”. A anti-psicologia, anti-psiquiatria, é aqui também uma forma de elogio da platitude – com ações e reações sendo resumidas a jogos de poder elementares, e onde qualquer desvio parece impossível porque, digamos, de outra “natureza”. Flandres não traz grande novidades a esse olhar sem aura que Dumont empresta ao mundo que o cerca, talvez apenas a exploração da ultra-violência da guerra apareça como o território de cinema que o permite discorrer de formas diversificadas a sua proto-tese de encenação.

Não se trata, somente, de um cinema de personagens contidos, mas de uma observação metódica do comportamento cênico da dita espécie humana como um conjunto de impulsos (não à toa alguns planos são atravessados ou são protagonizados por animais – porcos, gatos, etc). Esse traço de anti-humanismo tem um resultado áspero, ainda que não cínico (já que há desejo de verdade nessa descrença) – o que faz do visionamento de Flandres um misto de abismo/espanto e desanimação/apatia:

Não há entusiasmo em Dumont, não no sentido do desinteresse, mas no sentido de que não interessa a esse estudo de cinema-natural do diretor a busca de traços de fabulação ou construção de sentidos imaginários. Digo isso no mínimo possível cotidiano (fazer sexo, comer, se esquentar com uma fogueira...), onde não se usam quase adjetivos nas falas, descrições de sentimentos. Nenhum gesto tem vontade, apenas acontecimento, nenhum desejo vai além do imediato. No pós-guerra, porém, e aí está talvez o distúrbio sutilmente apontado por Dumont em seu último plano, dois personagens dizem que se amam – se amam quando ao invés de transarem apenas se deitam um sobre o outro e esperam.

Gesto clichê em outra cinematografia, esse “eu te amo” em Dumont é uma bifurcação radical de afetividade em um cinema que não consegue/quer ver além do imediato. O olhar doce e o sorriso contido da menina sob o corpo do homem indicam ali não um plano final de ironia, mas uma pequena epifania, uma mínima iluminação, que no cinema árido de Dumont seja talvez tão forte e limítrofe quanto a mais alta das elucubrações. Os bichos sem imaginação de Dumont continuam seus gestos brutais, mas ali, naquele plano há uma pequena fuga, mesmo que momentânea e inócua. Não à toa o filme acaba ali – nesse desvio quase imperceptível como se não soubesse como ser-filme diante dessa afecção quase alienígena agora ativada.

Preciso como um acadêmico cristalizado, Dumont retoma aqui caminhos e propostas formuladas em A Vida de Jesus e A Humanidade de maneira direta, mas que não suscitam muitos desdobramentos para quem o acompanha desde o começo. Reiterativo como estilo e como apreensão do mesmo, Flandres é a marca de uma obsessão formal que, ao mesmo tempo, pode dar a graça ao cinema do diretor (a visita dele ao “filme de guerra” tem momentos brilhantes no choque dos clichês da ação com seu postulado comportamental particular), e pode transformá-lo em apenas mais um exemplar de seus mecânicos não-personagens: um corpo opaco repetindo impulsos. Como um porco ou um gato – Dumont corre o risco (e parece pressentir isso...) de se conformar nesse universo sem imaginação e sem crise. “Feliz como uma vaca”.


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