Por Água Abaixo (Flushed Away),
de David Bowers e Sam Fell (Inglaterra/EUA, 2006) por
Eduardo Valente
Animação de cinema Entre
os vários personagens da micro-Londres habitada por ratos que existe nos esgotos
londrinos de Por Água Abaixo, há a figura clássica de um casal de turistas
americanos ridículos na sua extravagância. Para além da óbvia piada cultural,
os dois servem mais como símbolo da média do atual cinema de animação norte-americano:
exagerado, povoado por clichês e uma pretensa inteligência que é pouco mais do
que uma auto-referencialidade extrema. E Por Água Abaixo, com seu radical
DNA inglês, surge tão estranho a tudo isso quanto os ratos-turistas são estranhos
na cidade-clone do filme – não por acaso o desenho animado da Aardman foi um considerável
fracasso nas bilheterias americanas. Sentimos a diferença
radical já na primeira seqüência, onde ao invés de um “conceito esperto” (digamos:
rever a história da Chapeuzinho Vermelho como filme policial), somos apresentados
com toda calma a um personagem (Roddy St. James) e a um ambiente (sua casa no
bairro londrino de Kensington). Quem conhece o trabalho dos animadores da Aardman,
famosos por seus filmes com bonecos de massinha (principalmente Wallace &
Gromit – que aliás aparece no fundo do quadro logo no começo; mas também A
Fuga das Galinhas), sabe que esta é sua especialidade: a criação de autênticas
figuras ficcionais, cujo tratamento como personagens não tem nada de diferente
de nenhum filme live action. Para embarcar em Por Água Abaixo, portanto,
não nos é pedido que sejamos “espertos”, e sim que acreditemos no universo ficcional
criado e na trama que envolve aqueles personagens. O romance entre Roddy e Rita,
por exemplo, é claro devedor da comédia de erros clássica dos anos 30-40, podendo
facilmente ser imaginado como uma transposição do universo de um George Cukor.
Da mesma forma, todos os personagens parecem “vivos”: do rato Sid à família de
Rita (a avó é uma tirada de gênio), chegando principalmente aos brilhantes vilões
do filme, que são de fato a sua alma – tanto a quadrilha de ratos quanto, principalmente,
o sapo (cuja seqüência do passado é uma das melhores do filme) e seu primo francês. Nesse
sentido, os ingleses se aproximam muito dos filmes da Pixar, em especial os primeiros
e mais fortes deles (os dois Toy Story principalmente) – e não deixa de
ser curioso que este seja o primeiro filme da Aardman em animação digital 3D.
Ainda que esta transição não se torne uma questão do filme (que quase simula o
clássico design de bonecos do estúdio inglês), percebemos aqui a clara
diferença de um estúdio cuja formação em massinha sempre os fez ter que pensar
a fisicalidade do espaço onde seus personagens habitam. Não parece nunca que a
história de Por Água Abaixo se passa em alguma abstração virtual, e sim
em lugares por onde estes personagens transitam e possuem uma história pessoal.
A noção de ambiente é essencial para o filme, que trabalha com inteligência a
geografia (espacial e humana) londrina em verdadeiro microcosmos, e dá ainda vida
a uma série de espaços identificáveis e explorados (o covil do “vilão”, a casa
da família de Rita, o barco). Mas é óbvio que isso não significa
que o filme seja uma animação “realista”, afinal este espaço é uma recriação sempre
fantasiosa do mundo “humano” na dimensão animal (e dos esgotos – algo importante
e desafiador), onde o espelho da realidade é exagerado o suficiente para que nos
revele mais do que esperávamos sobre nós. E aí entra em jogo o outro elemento
constante dos trabalhos da Aardman: o fino humor inglês. Por Água Abaixo,
para além de sua preocupação com a trama, possui algumas das melhores piadas do
cinema em 2006 – seja lá em que formato for. Não são só tiradas rápidas (embora
haja muitas dessas), nem sacadas referenciais (embora haja estas também – com
a barata leitora de Kafka a melhor de todas), mas principalmente seqüências de
apurado timing cômico – entre estas, a da rã-mímica (em si uma referência
brilhante) transmitindo o sapo-vilão pelo celular certamente é de antologia. No
entanto, o melhor do humor cáustico e absurdo do filme está sempre a serviço da
trama e dos personagens, completamente baseado na construção destes – e aí é que
os ingleses da Aardman deixam claro que, seja ou não animação, seja ou não comédia,
o que eles estão fazendo é cinema.
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