in loco - cobertura dos festivais
Fora de Satã (Hors Satan),
de Bruno Dumont (França, 2011)

por Filipe Furtado

Luz e sombras

Com algumas poucas exceções, Fora de Satã se passa todo em locações externas, com planos centrados no mesmo espaço descampado, entre areia e a vegetação. É um espaço fora do tempo, ao lado de uma vila que sugere somente as margens de uma civilização representada exclusivamente pela autoridade de um par de policiais. Um espaço em constante conflito na sua geografia cuidadosamente selecionada e suas alternações entre o verde, os caminhos de areia que apontam a passagem do homem por ali e as poucas ocasionais construções. É o cenário perfeito para o último drama de Bruno Dumont. Pois Fora de Satã é um filme de horror teológico, drama sobre o duelo entre luz e trevas cuidadosamente trabalhando plano a plano por Dumont. É um embate que se dá na imagem, a cada cuidadoso recorte de luz e cada sutil movimento desempenhado por seus atores.

Fora de Satã
existe mesmo num limite entre o drama de idéias que tanto agrada a Dumont e um filme de horror muito peculiar. A grande influencia de Georges Bernanos é visível para alcançar esta combinação, e nisto é notável, quando pensamos a obra de Dumont como um todo, apontar que o filme flerta mais abertamente com a versão de Maurice Pialat para Sob o Sol de Satã do que com as adaptações que Robert Bresson fizera do escritor francês. O filme todo se resolve na superfície do plano. É Bruno Dumont retomando um pouco do que faz melhor, inclusive num filme que se assemelha muito mais a A Vida de Jesus e A Humanidade do que a seus trabalhos mais recentes. Dumont não é um materialista tão radical quanto Pialat, mas Fora de Satã também procura se ancorar num mundo concreto. Não à toa, os milagres, exorcismos e outros eventos sobrenaturais da narrativa são essencialmente físicos, desempenhados pelos atores de forma muito similar a das cenas de explosão de violência. Fora de Satã conta inclusive com uma versão muito própria da caminhada com o demônio de Sob o Sol de Satã - que, reimaginada por um viés que só seria possível num filme de Bruno Dumont, se conclui com algo que pode ser descrito como um dos mais improváveis exorcismos de todo o cinema.

Dumont localiza no seu protagonista tanto um agente divino quanto demoníaco, encerra no mesmo corpo a capacidade para dar vida e destruí-la com fúria semelhante. David Dewaele, cujo papel menor em O Pecado de Hadjewich trazia ecos deste salvador satânico, age permanentemente possuído, mesmo nos instantes em que o filme permite a seu personagem repousar - muito distante do padre que Gerard Depardieu interpretara em Sob o Sol de Satã, pois consciente desde o primeiro momento de que por ser homem já traz consigo o mal. O filme se permite perder-se em meio às sensações de dúvida que a figura de Dewaele desperta.
Cada quadro é encarado por Dumont como um filme próprio, uma nova oportunidade para que o mesmo embate se desenvolva. Daí talvez um pouco da reação fria com que Fora de Satã foi recebido por muitos, tanto em Cannes, quanto aqui na Mostra. Para um filme tão preciso, sobram-lhe incertezas. Fora de Satã é menos um filme incoerente e mais uma obra de significado fugidio, mais do que disposta a se encerrar nos seus prazeres estéticos. O bem e o mal são menos uma questão dialética, e mais resultado de uma troca entre luz e sombras sobre uma paisagem do noroeste francês.

Novembro de 2011

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