Garapa, de José Padilha (Brasil, 2009)
por Cléber Eduardo

Falsa denúncia

Existe o filme e seu discurso, em partes separadas? Ou o filme como discurso, como uma fusão? Existe um filme desvinculado de sua recepção crítica e cultural? Ou desvinculado de seu contexto motivador – responsável, em parte, pela suas escolhas como filme? São perguntas a ecoar quando se pensa em escrever sobre Garapa, de José Padilha, sem levar em conta em um primeiro momento o “fora do filme”, ou seja: o currículo de êxitos de visibilidade e repercussão do diretor, com Ônibus 174 e Tropa de Elite, mas também o momento histórico do cinema brasileiro e sua relação com os efeitos da pobreza. Seria possível isolar por um momento o filme de seus contextos de produção e recepção se esses contextos são parte da existência do filme? Seria possível esquecer José Padilha, o cinema brasileiro dos anos 2000, a tradição do cinema brasileiro nas imagens de pobreza, a sociedade do país e a política pública por meio de um governo?

Suponhamos, como exercício de limpeza do olhar, que sim. Que exista uma lógica interna, própria, que distingue um olhar (o do filme). Suponhamos que existe Garapa, um filme amalgamado a referentes anteriores a eles, um filme talvez produzido em parte por esses referentes, mas um filme também com seu RG, que procura seu lugar no mundo com suas especificidades. O filme como filme carrega esse ideal de um “si mesmo diegético”, mas é resultado impreciso da relação entre procedimentos com sons e imagens, delimitados e amplificados pelos enquadramentos, pelo encadeamento ou choque entre seus fragmentos, pela forma de filtrar ou compensar a luz, pela estruturação dos acontecimentos, pelo ritmo alcançado pelo baile das durações, pelos espaços e situações para onde se dirige o olhar. Mas por que resultado impreciso se, como se diz miticamente, tudo está lá para ser visto? Porque um filme é uma avalanche (lógica ou não) de fragmentos e de estruturas organizadoras (com menor ou maior lógica), na qual só temos algum nível de acesso (a essas lógicas organizadoras) se destacarmos umas operações e ignorarmos outras. Tudo está lá para ser visto, mas não vemos tudo. Nem podemos, nem temos de.

O importante nessa procura de uma partícula qualquer de “em si” de Garapa é não levar em conta a recepção e a suposta motivação fora da tela como partes da enunciação e do enunciado, quase como um anúncio do que é o filme e de como deve ser visto, porque essa relação de fora para dentro da tela submete o filme ao mundo de forma ampla (como reflexo) e não o mundo ao filme de maneira específica (como forma, como olhar). Deixemos o mundo parcialmente de fora para lidarmos com o mundo lá dentro. Mundo este que, aliás, nasce fora dele, e assim aumenta a complexidade de nosso olhar (o nosso para o filme que se mistura ao mundo). Afinal, uma cartela sobre a fome no país, com assinatura de Josué de Castro, nos prepara para uma “ilustração”, não para um encontro. No caso, são imagens que, em sua soma ou em suas relações (soma # relação), ilustram uma situação, que, fora da experiência direta, conhecemos por mediações (leituras, imagens). Parte-se de dados e de um contexto para uma suposta especificidade. Especificidade sintomática, portanto, que, embora não tenha a voz da ciência dos documentários com explícita enunciação (que diz) e incorpore tanto a dinâmica observacional como a interativa (que vê, que ouve), deixa clara uma estratégia de “confirmação” (“com afirmação”). Sabe-se o que se deve filmar, sabe-se o que se encontrar, porque se sabe antes de tudo.

Toda a questão está em como se filmar o que se deve e como filmar o que se quer. Com quais motivações? Com quais efeitos? Se sairmos do específico do filme, lidaremos de cara com a cultura a qual está atrelado, como agente e como recipiente, que é tanto a cultura contemporânea das imagens como a tradição do cinema brasileiro, cada uma delas em suas vertentes derivadas da constatação de uma sociedade desigual. Em um nível (o da atualidade), busca-se a crueldade, ao menos de aparência. Não se quer mostrar a potência, a felicidade e a beleza dos pobres e anônimos (pauta dos anos 2000 nos documentários), mas justamente o contrário disso: a impotência, a dor e feiúra dessas vidas. No outro nível (o da tradição), parte-se da estética da fome (o programa de Glauber Rocha), mas para se chegar a uma fome de estética, explícita nas escolhas das lentes e na opção pelo preto-e- branco como ausência. No entanto, essa ausência é uma estética e, em vez da agressão aos olhos e à percepção, pode-se estimular a indiferença, pois a imagem começa a duelar com as experiências mostradas.

Garapa organiza em montagem paralela imagens de miséria de três famílias do Ceará. O fato de haver três famílias e de se passar de uma a outra, como se fosse a mesma família, é óbvia tentativa de não se concentrar no específico de uma situação. Há uma busca para se mostrar variações do mesmo e assim expor um esboço de painel homogêneo. Painel da fome, da pobreza, de famílias atoladas em imobilismo, de mulheres como vítimas e resistentes, de maridos alcoólatras e fragilizados, do assistencialismo governamental insuficiente. Vemos repetições de situações e de relatos dos pais, vemos as imagens das crianças anêmicas deitadas no chão, com moscas na pele, ou tomando a garapa na mamadeira para disfarçar a fome. Os fragmentos são encadeados com procura de algum dinamismo.

Há empenho em se estabelecer um percurso narrativo dentro das seqüências e na amarração delas. Há desejo de organização do imutável. Para quê? O filme aparenta conter a resposta: procura uma instalação ligeira de nosso olhar nas situações específicas, de modo a olharmos de perto sem olharmos demais, chocados, não imersos, mas o volume de mesmas situações, como efeito geral, pode parecer nos colocar em contato com uma parte grande dessas vidas. Na verdade, é uma única parte. Para Garapa, só há a falta. E essa falta é uma presença quantitativa no filme, presença pela redundância e pela soma, não pela associação e pela multiplicação. A narrativa desdobrada em três, na verdade, é uma única apenas, porque, em vez de expandir as relações, Garapa se concentra na repetição. Não a repetição de um mantra, que estabelece uma percepção imersa, mas uma repetição diluidora, que deixa as energias das imagens perderem-se na redundância.

Vemos essas imagens redundantes de situações de pobreza e de seus efeitos. Por que nos mostram e por que vemos? Para que mostrar e ver? Há de cara um princípio de revelação solidária, ou de procura pela solidariedade a partir da imagem, mas não confundamos o real com o virtual, porque as imagens na tela são virtuais, mesmo dizendo respeito a pessoas fora da tela. Portanto, são uma imagem segura, sem cheiro, sem fome e sem cor, que estiliza o referente pela luz e pelas lentes “de distorção", pelo encadeamento de planos organizados de maneira própria, sem necessária relação com a sucessão de acontecimentos captados pela câmera. Estamos diante da solidariedade virtual, estetizada, talvez até para aparentar mais cinza e sem relativização pelas cores, mas cujo efeito, não necessariamente único, também pode ser o do amortecimento e da mediação mais ampla. Vemos que a fome existe, que existem famintos, certos tipos de famílias, um abandono generalizado ou um assistencialismo frágil, mas, antes de tudo, vemos as imagens mediadas de tudo isso; a mediação.

O que fazer com essas imagens a partir da experiência com elas? O que se deseja com essas mediações? Dar-nos a beleza da pobreza, a estetização justa com a crueldade da situação, um mal estar em nosso mundo do consumo ou o próprio consumo do mal estar? O mal estar como mercadoria visual. Pela própria organização dessas imagens, não há nada a fazer, porque, afinal, a estagnação está afogada em determinismo. Portanto, se a solidariedade virtual com o sofrimento parece ser encaminhada para a manutenção do nosso imobilismo diante de um problema dos outros (problema da humanidade, não problema pessoal), resta o denuncismo. Porque a maneira de se mostrar os efeitos da pobreza, em detalhes, ainda que ligeiros, é claramente a de um olhar a denunciar algo. Não exatamente as condições inumanas de vida, com algum grau de proximidade, mas as supostas condições sociais desse descalabro, com distanciamento na proximidade da câmera. Antes de vidas, de homens, crianças e mulheres, procura-se o sintoma de uma denúncia vaga e imediatista, generalizada a ponto de se dispersar (a fome, a pobreza) e específica demais a ponto de se reduzir (a incompetência do assistencialismo vigente).

Quando insiste em perguntar sobre programas sociais do governo Lula, como se na presença ou na ausência desses programas estivessem as causas históricas da fome, Garapa parece uma reportagem com desejo de ser documentário ou um documentário com vocação de reportagem, porque nesses momentos procura impor um diagnóstico nas perguntas e, como o problema sugere algo para além da competência ou não dos programas assistenciais, as respostas soam como contra-ataques à escolha do denunciado (as estratégias governamentais). Sem a imersão brutal na fome e nos famintos, que não se dá pela proximidade da câmera apenas, Garapa coloca-se como um posicionamento, o tempo inteiro mal articulado, diante da relação entre fome e dinheiro público. Não está atrás da experiência, mas da politização dela. No entanto, trata-se de uma politização redutora. Talvez esteja nessa redução a sensação de se estar diante de um filme com pressupostos claros, e uma falta de rumo quando tenta fazer com algo com essas premissas.

Junho de 2009

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