in loco - cobertura do Festival do Rio

Generosidade e visão de cinema
por Eduardo Valente

Dentro da Première Brasil, existem dois longas dos quais simplesmente não posso falar sem assumir um lugar bastante peculiar quanto à sua realização. No caso de O Céu de Suely, de Karim Aïnouz, li versões diferentes do roteiro antes da filmagem, oferecendo comentários e idéias sobre estas, e acompanhei de perto o processo de finalização, tendo acesso a pelo menos três cortes do filme, anteriores à sua versão final que chega agora aos cinemas fazendo com estas versões o mesmo processo de comentários detalhados de que no roteiro. Já no caso do documentário Onde a Coruja Dorme, minha participação anterior é bem menor, mas também precedia a visão do produto final: tendo visto suas duas primeiras encarnações (como curta e média), fui um de vários amigos chamados pelos diretores Márcia Derraik e Simplício Neto para ver um corte do longa-metragem, e oferecer comentários sobre a sua estrutura, visando esta versão final.

A exposição acima não é só uma questão de honestidade (seria ridículo começar a falar dos filmes como se os tivesse visto pela primeira vez no Festival), nem um desejo (que vejo em alguns jornalistas) de esbanjar intimidade com os cineastas. Para mim o mais importante neste relato é falar da generosidade e grandeza artística que está implicada em quem coloca suas obras nas mãos de amigos ou pessoas próximas para que dividam com eles a angústia da criação, e especialmente do fechamento de uma obra cinematográfica. Alguns cineastas gostam de construir uma mitologia em torno de si mesmos de “donos totais de seus trabalhos”, e muitas vezes filmam e montam seus próprios trabalhos. Mais do que simples arrogância, me incomoda a burrice do processo (e a ainda maior de se orgulhar dele): as imagens e sons do cinema são manipuladas tantas vezes na finalização de um filme, que é apenas natural que o olhar do cineasta vá se tornando lentamente desassociado dos sentidos primeiros que buscou imprimir em cada uma daquelas que compõem o seu filme. Saber confiar em pessoas que tenham olhos mais virgens do que os seus para este material (tendo, no entanto, o entendimento do seu fazer artístico, claro – não falamos aqui dos abomináveis screen tests) é, portanto, saber ver que o cinema é maior do que cada um de nós.

Por isso tudo é que me seria especialmente difícil escrever sobre ou analisar friamente O Céu de Suely ou Onde a Coruja Dorme: quando olho para os filmes prontos, hoje, não vejo só aquilo que se coloca para análise do espectador que vai à sala, e sim todo o processo que os levou à sua atual forma. Tanto quanto os belos filmes que sei que são, vejo também todos os filmes que optaram por não ser: mais curtos ou mais longos, em ordem narrativa diferenciada (ambos permitiam uma incrível liberdade de ordenação do material), mais ou menos diretos em seus enunciados. Aprendi muito sobre cinema vendo Karim, Simplicio e Márcia ouvindo as opiniões de outros, e sabendo tirar delas o melhor – mudando de idéia sem medo quando havia algo ali que fizesse sentido para eles, ou reforçando suas crenças anteriores. E o que mais me alegra poder dizer sobre eles é que, mais que apenas bons filmes, são os melhores filmes que seus diretores poderiam tirar do material que filmaram. O que, acreditem, não é pouca coisa a se dizer.

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Para não dizer que não falei das flores, digo, filmes: completamente diferentes em muita coisa (ficção/documentário; drama/alegria), O Céu de Suely e Onde a Coruja Dorme também têm muito em comum. A começar pelo extremo respeito com que filmam seus personagens – respeito que nunca se confunde com piedade de um lado; nem com distanciamento do outro. Depois, pela capacidade de revelar um Brasil que o Brasil não sabe filmar bem: o da rotina das pequenas classes – sempre ora idealizada, ora vilipendiada. Aqui, não: se sofre de vez em quando, se diverte assim que possível, se trabalha sempre – se compreende bastante o processo em que se está inserido, sem com isso tornar-se conformado ou conformista. Acima de tudo, são filmes de uma vitalidade quase absurda, que dão vontade de se responder com mais e mais filmes.


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