O Escritor
Fantasma (The Ghost Writer),
de Roman Polanski (França/Alemanha/Reino Unido, 2010)
por Paulo Santos Lima
Para
o espectador fantasma
Mesmo que mandemos às favas a busca pelo traço
autoral nos filmes, o caso de Roman Polanski – e poderíamos citar
outros como Orson Welles e Godard – pede uma atenção ao fato de
sua relação pessoal com o mundo reverberar em seu trabalho. Não
há, portanto, como deixar de ver que O Escritor Fantasma
é uma obra de reação – no caso, reação a um mundo regido sob gabaritos
norte-americanos. É, também, um cutucão mordaz e debochado nos
ingleses e americanos, tal qual Busca Frenética mangava
dos franceses. Em todo caso, e talvez justamente pelo baque que
ele sofreu com algumas tragédias na vida, a ironia é uma presença
na obra de Polanski, e não é raro que riso e o mal-estar, entrelaçados,
perturbem a apreensão do espectador, tirando-lhe o chão ao implodir
qualquer noção de tratamento.
Diante disso, nem vale aqui perder tempo comentando
que a crítica (a demanda?) considerou O Escritor Fantasma um
thriller. O filme é pura ironia, sua chave é a do absurdo. Um
absurdo que está na própria construção dramática e desenvolvimento
da trama, uma vez que a grande quantidade de informações e clareza
que chega a nós e ao protagonista, um ghost writer (Ewan
McGregor) que, após a estranha morte de seu antecessor, é contratado
para finalizar a biografia
de um ex-ministro britânico, Adam Lang (Pierce Brosnan), envolvido
em vários escândalos, só serve para salientar o absurdo da história,
que é sólida como desenvolvimento dramático-narrativo, mas furada
como uma peneira. É na chave da inverossimilhança, aliás, que
o filme atenta contra a “boa norma”. Atenta, sobretudo, porque
sua gramática é a do exagero. É no exagero da intensidade das
impossibilidades que, de modo mais sutil e ambíguo, O Pianista
tem um protagonista que consegue, mais por acaso do que por feito,
sobreviver aos nazistas – o pianista alemão, momento “sensível”
do longa, é o exploitation disso. Aqui, o tal escritor
sem nome, que se diz “fantasma” ao seu biografado, recebe de bandeja
uma série de informações sobre o lodaçal no qual Lang está afundado,
desde a TV no bar antes da partida para a tal ilha onde o ex-ministro
vive, nos EUA, até uma providencial gaveta no quarto do escritor
falecido com uma baita pista-chave.
Polanski é um cineasta que trabalha na esfera
da literalidade, jamais do simbólico, e O Escritor Fantasma
é um filme do dado, do visível. É um cineasta da trama bem articulada,
de um estilo que prima pela transparência narrativa e quase sempre
seguindo por curvas e retas de um roteiro bem construído. É como
uma troça, pois o espectador é conduzido por um caminho que vai
levá-lo ao inesperado, ao vazio – aqui volta à memória o desfecho
propositalmente banal de Busca Frenética, que pulveriza
toda a carga de mistério, de thriller. A seriedade, enfim,
não é algo mantido intacto nos filmes de Polanski. Até O Bebê
de Rosemary, clima barra-pesada em filme também coalhado de
informações (a nós e ao casal, sobre a esquisitice dos vizinhos
satanistas), tem seus momentos de contração bocal para o riso.
O Escritor Fantasma é mais leve, mais comédia, apesar da
tensão, ou mais suave para o espectador ainda que este perceba
a aflição e o risco que o protagonista corre. O modo como o tal
escritor fantasma desata o nó do mistério é inverossímil de tal
encadeado e fluido. É, decerto, um filme feito por alguém com
pressa, com ímpeto de reação.
Longe
de psicologizar o autor Roman Polanski como alguém que, com sua
obra, procura perturbar, causar mal-estar (Haneke seria um correspondente
disso?), a construção de boa parte de seus longas, sobretudo os
mais conhecidos, dos citados acima a O Inquilino, Chinatown,
Lua de Fel e Macbeth, denunciam um processo articulado
e pensado de condução para um abismo, para uma zona de desconforto
e perplexidade. É um efeito bastante negativo ao espectador, mesmo
quando a agressão é voltada para o personagem, porque o que está
sempre em jogo nos filmes de Polanski é essa exposição literal
das coisas sem que isso permita uma organização dessas coisas.
Um curto-circuito teleológico, maquinação que somente um Dr. Mabuse
imaginaria. Essa pane da codificação e concatenação significativa
parece mais suave em O Escritor Fantasma,
que deixa fluida a resolução pela pegada leve e ligeira com a
qual sua trama é conduzida, com a aflição sendo apenas a do personagem,
nunca a nossa, e ambos, nós e o escritor, alinhadíssimos, descobrindo
o mistério e organizando facilmente as peças no tabuleiro, uma
vez que tudo nos foi dado.
A contrapartida ocorre no último plano, com o
escritor saindo para o extracampo e indo para o beleléu. É um
desfecho notável, de fusão complexa, pois o inusitado e a ironia
da cena geram a perplexidade e o sorriso cínico. Rimos do nosso
duplo projetado, matamos esse outro, até então nosso idêntico
e esperto, agora pobre azarado boçal, que estava na tela. Um jogo
perverso, o desse final, que nos coloca como covardes ou algo
pior. O Escritor Fantasma retorna ao final de Chinatown
(ou de O Bebê de Rosemary) para concluir, sardonicamente,
que não há salvação nesse mundo.
Julho de 2010
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