emulando

As três dimensões de Joana D'Arc
por Luiz Soares Júnior

Joana D'Arc de Rossellini (Giovanna D'Arco al rogo), de Roberto Rossellini (Itália/França), 1954

Joana D’Arc arde na fogueira. Mas ainda lhe é dado, na morte e para além da morte, assistir a crônica de seu itinerário sobre a Terra. Joana, escoltada por um cardeal vetusto, está numa espécie de limbo, espaço crepuscular (um céu estrelado é o único cenário) que se identifica com o refúgio onde o espectador de cinema, protegido pelo anonimato, se detém. Ela assiste à descrição dos episódios de sua vida, e nós assistimos com ela e assistimos a ela assistir (Rossellini: “neo-realismo pra mim consiste em acompanhar um ser e descrever todas as suas impressões e descobertas”).

A descoberta-mor de Joana consiste em sua conversão. O limbo onde ela se encontra é uma espécie de Purgatório, ante-sala onde se elabora uma transformação alquímica a que só o teatro nos permite o acesso: a de mulher frágil e cheia de fé num mito trágico, político, cósmico. Joana assiste a si mesma tornar-se personagem, persona projetada pela História para o cosmo. Há pelo menos três dimensões em Joana D’Arc na fogueira que assinalam esta passagem, este conversão de pessoa em personagem, de uma vivência subjetiva em estampa mítica:

O primeiro plano é o da história propriamente dita: a história de Joana que se confunde com duas trajetórias históricas geneticamente paralelas e reflexivas, da formação de uma consciência nacional da França, mas também a História de um certo período emblemático do catolicismo. Joana, o mito é produto da conjugação destas histórias. Uma série de tableaux vivants, câmera fixa e escrutinadora, apresenta-nos a História como um auto medieval, vivo, colorido (mesmo que nas cores edulcuradas, opacas do Gervacolor usado no filme), objeto de uma crônica enriquecida pela imaginação e pontuada pela música.

Contraposta a esta representação, temos a possibilidade, concedida a Joana, de testemunhar os acontecimentos que escalonam sua peregrinação: o cenário severo (céu estrelado, luz rarefeita) que define o palco nu e revelador de onde a santa guerreira acompanha sua História, circundada por um cardeal. Se nos filmes da trilogia com Bergman (Stromboli, Europa 51, Viagem a Itália), as palavras de ordem de Rossellini a respeito do neo-realismo, citadas acima, eram ativamente definidas por uma câmera que não abandonava a atriz em nenhum momento, descrevendo ativamente o ritmo e circunvoluções de suas trajetórias pelo espaço, testemunhando suas descobertas como um acólito fiel, a Joana D’arc “no limbo” nos é apresentada numa alternância de planos gerais (onde vemos Bergman movimentar-se ao longo do espaço, tendo agora como acólito não mais a câmera inquisidora, mas um atento cardeal) e closes. Dicotomia que ilustra a oposição descrita mais acima: Joana se agita no limiar de uma experiência subjetiva (closes) e da iminência de se tornar um mito (planos gerais). É ao assistir a sucessão de quadros onde se representa a sua história, é ao tornar-se objeto desta história, figura progressivamente estreitada pelos círculos do poder temporal e espiritual, que a mulher irá encontrar os limites de seu destino e conformar-se a ele.

Não esqueçamos que Joana inicia o filme já definida como um mito (Rossellini-Claudel abre o filme com a sua morte, ardendo na fogueira). O que ocorre aqui não é a descrição linear e progressiva de Joana pessoa tornando-se alegoria mítica ou Joana lenda; Rossellini não conta esta história, ou qualquer história num sentido vulgar, corrente. Joana D’Arc para Rossellini/Claudel é mito, lenda, estampa, desde o princípio e por princípio. O que Rossellini faz é mostrar a genealogia deste mito, é dar um passo atrás e exibir o mecanismo através do qual toda lenda se forja. O que se põe no filme de Rossellini é o fato de que só apelando para a ficção, para a representação (tableauxs vivants da crônica histórica), podemos encontrar um caminho de acesso à vida – no caso, a vida da mulher Joana. Só repintando, re-apresentando a vida, transformando-a num dispositivo, num mosaico, num quadro (numa obra de arte, ou em uma obra simplesmente), temos à disposição a possibilidade de fruí-la autenticamente. De reencontrá-la.

O documento, a exatidão histórica são vias de desvio, e não de encontro da vivência histórica. É claro que Rossellini procura basicamente retratar uma experiência numinosa, aurática, única. Não estamos aqui diante de alguém que se contenta com o desenho de uma hagiografia, mas de um artista que ultrapassa a hagiografia em direção a uma representação que possa suscitar em nós identificação, reconhecimento. Basicamente, porque lida com afetos e modalidades de ser tidos pelo católico augustiniano Rossellini como eternos, inerentes ao homem tocado pela Graça , para além das distinções culturais e desinências historicistas. O que importa a Rossellini é descobrir como uma experiência individual (relativa à fé, no caso) pode servir de parâmetro universal, pode estabelecer um princípio: herói ou santo. Em ambos os casos, para chegar à Jeanne D’Arc heroína ou canônica, é preciso reinventá-la, dar-lhe um status de personagem para que, por meio da intuição (guia seguro da arte e da religião), possamos nos identificar a ela e perscrutar as mediações que ligam a  trajetória mística a uma vivência comum aos outros homens, um modo de ser que possa servir de exemplo. Sim, os propósitos pedagógicos de Rossellini, que têm sua realização mais metódica nos filmes para a TV dos anos 70, têm neste oratório de 1954 o seu signo precursor.

O terceiro plano em que o filme trabalha é o propriamente místico e mítico, com o qual o filme inicia e se encerra, com a ascensão de Joana aos céus. Plano alegórico da apoteose pictórica, da música evanescente, da síntese cósmica. Essa é a parte mais claudeliana do filme, a dimensão em que teatro e música (drama e música: melodrama) desvelam Joana como um personagem enfim reconciliado com sua dupla dimensão: mito personificado, existência alçada à plenitude de um princípio universal. É interessante ressaltar que na montagem original do oratório de Claudel, enfatizava-se o despojamento da encenação. Apenas Joana amarrada na fogueira, minimalismo da mise-en-scéne, austeridade jansenista. A transcendência é invocada pela junção entre música e texto; Claudel dispensa o patrocínio da imagem, da metáfora teatral.

Rossellini fantasmagoriza a coisa; temos uma Joana cindida em três dimensões, demarcadas finamente entre si, é certo, mas representadas de forma compósita, artificial e inesperada: a crônica, por tradição realista da representação histórica, da sua História (a que Joana assiste) é agora uma miniatura medieval, com todo o fulgor de mundanidade e brilho que se pode esperar. Rossellini usa ainda projeções, o processo de espelhos pintados criado por Eugen Schufftan, adaptando-o a seus propósitos, com o objetivo de tornar ainda mais inverossímil a crônica. Contraposto a isso, o cenário onde a personagem permanece a maior parte do filme, o” limbo”, para o qual se poderia esperar o barroquismo reservado aqui à crônica histórica, é de uma sobriedade exemplar, e  reencontra aí o espírito do oratório: céu estrelado e vasto, abóbada que evoca a noite negra da alma cara aos místicos, vácuo de onde surge toda e qualquer abertura à Divindade. O ritmo lento e cadenciado da sucessão dos planos contrapõe-se à dramaticidade (mantida) da entonação teatral, sua ressonância agônica.

Enfim: Rossellini não abre mão de nenhuma das feitiçarias do teatro. Em contraponto à severidade de Claudel, temos um mosaico caleidoscópio de ritmos e figuras que restitui à cena os seus direitos de origem. Assim como a paixão de Joanna (indivíduo) necessita transformar-se em personagem de uma miniatura medieval para que reencontremos a força de seu itinerário espiritual, o teatro precisa refazer-se em outro meio e sob nova máscara: o cinema. Na Joana D’Arc de Rossellini, o teatro e o cinema fazem refulgir sua origem e sua destinação comuns: cartografia da alma que se abre ao mundo, e no mundo se encontra e reflete. Exercício de captação sismográfica, plástica e musical do interstício onde este encontro se realiza.

Abril de 2008


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