Girimunho, de Helvécio Marins e Clarissa Campolina
(Brasil, 2011)

por Raul Arthuso

No redemoinho

Há em Girimunho uma vontade de misturar-se ao espaço para tornar-se parte dele. A começar pela opção de usar como protagonistas duas senhoras não-atrizes para fazerem papéis de si mesmas. Pois é a partir delas, como um portal, que é possível acessar um sertão mineiro que, como sugere a literatura de Guimarães Rosa, fonte de inspiração para o filme, é um “lugar-mundo”.

RaniaHelvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina tentam captar as maravilhas desse espaço, algo muito caro à geração do cinema brasileiro que começa atualmente sua carreira no longa-metragem. Há, por isso, a idéia de entrar no espaço não apenas para observar o íntimo ordinário da trajetória de Bastu e Maria – o corpo, os gestos, o riso, a musicalidade da prosódia local – mas também o extraordinário, como o redemoinho, o batuque, os fogos de artifício. Neste “lugar-mundo” o maravilhamento não faz distinção entre um e outro. Bastu e Maria são tão o mundo quanto este lugar é elas; por isso a associação estabelecida desde o início entre interior e exterior: a água e o rio como imagens da vida e sua trajetória, como um fluxo que corre e sempre permanece correndo; as folhas secas caídas como metáfora das perdas numa longa trajetória; o redemoinho, metáfora mais potente do filme, como representação de uma existência a partir do turbilhão de experiências.

É nesse espelhamento que se estrutura o filme, na medida em que quase não há enredo, construindo a história a partir da idéia de performance das duas atrizes-personagens ao invés do drama, já que ele, como roteiro fechado, quase inexiste. Girimunho é, então, um apanhado de cenas de Bastu e Maria em ação, entremeadas por planos que compõe as metáforas descritas acima ou então em situações dadas pelo espaço, como o show de forro, Contudo, Girimunho não apenas diz respeito a esse “lugar-mundo” de Bastu e Maria como refere-se em certa medida ao próprio cinema de Marins e Campolina.

RaniaEm texto sobre a sessão de abertura da II Semana dos Realizadores, o crítico Fábio Andrade enumera algumas questões presentes no curta-metragem O Mundo é Belo, de Luiz Pretti, “prementes no cinema brasileiro contemporâneo, especialmente (mas não só) o de circulação restrita a festivais”, entre elas “a precariedade como propulsor estético; uma adoração explícita da plenitude do mundo e da vida; a relação forte com a videoarte; o cinema em primeira pessoa, minúsculo mas de ambições gigantescas”. Se algumas dessas questões estavam presentes na carreira em curtas-metragens de Marins e Campolina, seu primeiro longa é uma espécie de desembocar delas, já que os procedimentos antes encontrados isoladamente nos curtas – a primeira pessoa em Trecho; a performance e a precariedade em Nem Marcha Nem Chouta, a videoarte em alguma medida em todos – aparecem aqui articulados em conjunto, como que para concretizar o derradeiro espelhamento do filme com a própria trajetória do fazer cinematográfico da dupla que, assim como a trajetória de Bastu, desemboca no rio, olhando para o mundo enquanto revive as experiências num momento decisivo, entendendo essa “plenitude do mundo e da vida”.

O problema do cinema dessa geração não é entender, adorar ou elogiar essa plenitude, mas conseguir materializá-la na tela, algo não tão simples quanto filmar um plano bonito ou escrever uma bela fala ou narração dizendo que esta plenitude existe. Esse desafio, intimamente ligado às grandes pretensões, mostra seus limites em Girimunho. Se quase todas as cenas em que a câmera está totalmente entregue à performance de Bastu e Maria são cenas vibrantes, cheias de alegria, num certo sentido hipnotizantes menos pela capacidade das duas em executar o papel, mais por algo intangível e escapável da lógica de uma dramatização deste universo ficcional, é na própria demonstração de vontade de vida de Bastu e Maria enquanto agentes na tela que reside o maravilhamento em Girimunho. Isso se evidencia, por outro lado, quando elas não estão em cena e o impulso de poetização e criação de metáforas com uma articulação próxima da videoarte dão belas imagens, mas que parecem insípidas em relação ao poder das duas senhoras na tela. Se Bastu e Maria respiram essa plenitude, olham a vida de dentro do redemoinho das experiências e concretizam uma trajetória de entendimento do seu lugar, Girimunho deixa uma sensação de pular desse olhar por dentro, quando está com suas protagonistas, para fora, deslumbrado com a possibilidade de captar o todo desse redemoinho.

Outubro de 2011

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