pariscópio
Glauber em Paris
por Cezar Migliorin
O Dragão da Maldade contra
o Santo Guerreiro e a fala de Antonio das Mortes
O homem cego descobre que seu amigo, e homem de
confiança, está tendo um caso com sua mulher. Aos gritos, ele
leva os dois para a frente do povo, no alto das escadas de um
bar, como se estivesse em um palco, e ali obriga que os dois se
beijem “para que todos da cidade saibam”. A mulher, vestida em
esvoaçante e transparente vestido lilás, pega uma arma e atira
no homem que a denunciou. Um tiroteio começa e ela se esconde
dentro do bar com o professor, que a protege. Depois do
tiroteio, do lado de fora do bar, ferido, está o amante da mulher.
Ajoelhada a seu lado a mulher recebe uma faca do professor e mata
seu amante; são mais de 20 facadas. O amante, morto, é arrastado
para o meio do campo seco e deserto. Em meio à poeira, o professor
e a mulher, ainda suja de sangue, se beijam e rolam abraçados
por cima do ex-amante morto.
É O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha, em cartaz, numa belíssima
cópia exibida no Espace Saint Michel. Paris. Fotografia de Affonso
Beato.
Glauber Rocha é impressionante: aborda o sexo,
a religião e a poesia não como tema, nem nas falas dos personagens:
é o próprio filme que entra em um transe místico e perverso, onde
desejo e realidade não se distinguem. A vida é filmada como uma
mistura entre o transcendente – delírio ou religiosidade – e o
ordinário dos homens e do poder. A fome e a opressão não são narradas:
elas afetam o filme e os personagens, transformam-se em matéria
sensível.
Esta mistura indiscernível é produzida com a materialidade
mesmo do filme. Há uma seqüência em que o coronel (Jofre Soares),
em gesto de explicita demagogia, decide ser caridoso e dar farinha
e carne seca para o povo. Sua fala é inicialmente objetiva, ao
mesmo tempo em que vemos o povo. Aos poucos ela se torna compulsiva,
e parece se distanciar do próprio coronel – para se tornar uma
fala sem dono. Finalmente, a câmera chega ao coronel, calado,
enquanto sua fala permanece em off – um off-in,
se poderia arriscar.
Este procedimento se repete algumas vezes no filme;
é uma fala que se perde, que não encontra mais destinatário, e
que nem mesmo parte da personagem. Em um mesmo plano a fala começa
como sendo um texto proferido por uma personagem que logo se torna
apenas um meio por onde a fala sai.
Quando Antonio das Mortes, por exemplo, percebe
seu papel de opressor, e expõe isso à Santa (personagem que materializa
a passagem do cotidiano ao místico), ele vira-se para a câmera
– e, subitamente, não é mais à Santa que ele fala, mas a todo
o universo. Aqui, a ruptura da quarta parede nada tem de metalingüístico,
ou de ruptura com a transparência narrativa: é a fala de Antonio
das Mortes que não cabe mais nos limites da história ou nos limites
de seu personagem. Antonio fala por si ao mesmo tempo em que se
torna um meio para que o texto apareça: o texto ultrapassa quem
o expressa, como se o mundo se pusesse a falar pela boca de Antonio.
É uma estranha desincronia que se dá em cenas
como esta, em que Antonio se dirige à câmera: o som não se encontra
separado fisicamente da imagem, pois a fala é sincrônica à imagem,
mas, no deslocamento do foco de sua fala, da Santa ao espectador,
é do próprio Antonio que a fala se separa. Ele continua a falar,
mas o texto não mais lhe pertence. O som se separa da imagem para
ser um som do mundo em sincronia com a boca de Antonio das Mortes,
mas separado deste.
Éramos 17 espectadores em uma sessão às 22:00
de uma segunda-feira. Em Paris a história do cinema se confunde
com o que de mais recente é feito. Antonio das Mortes,
como o filme é aqui conhecido, é de uma contemporaneidade impressionante.
Fazer a imagem entrar em transe e misturar-se ao “delírio do faminto”
(Ivana Bentes): é essa a contemporaneidade destas imagens que
nos conectam a muitas fomes.
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