Gomorra (idem), de Matteo Garrone (Itália, 2008)
por Eduardo Valente

Escandalosa esquizofrenia

Uma vez que se saiba que Gomorra é adaptado de um livro escrito em forma de “romance jornalístico”, que busca desvendar o funcionamento das microestruturas de organização da máfia siciliana, compreendemos boa parte das intenções do filme. Matteo Garrone se arvora o papel de revelador das “verdades”, num sentido de denúncia que se completa e fica bem claro nos longos letreiros ao final, cheios de estatísticas e de informações factuais sobre a máfia. Seu filme, pretensamente de ficção, é um prisioneiro da realidade e, mais do que isso, de uma vontade de ser agente de denúncia e modificação dela. Até aí, nada demais. Afinal, trata-se tão somente de uma declaração de intenções – que pode agradar mais ou menos a cada um, mas que importa mesmo é vermos como são levadas a cabo como cinema.

Narrativamente, Garrone se mostra está bastante up to date com o cinema contemporâneo, optando por quebrar sua narrativa em seis ou sete histórias contadas simultaneamente. A motivação aqui também é clara: se a máfia siciliana é hoje uma estrutura complexa que envolve várias formas de atuação, para compor um “retrato completo” das estruturas mafiosas seria preciso essa estrutura multi-plot. O único problema do raciocínio é que, ao fim e ao cabo, a forma de narrar vai retirando a força das individualidades, e assim que percebemos, que o papel de cada um dos personagens é bastante bem delineado para servir a este retrato maior, servindo acima de tudo ao desejo de generalizar e denunciar, vamos perdendo o interesse no que vem de cada um deles (independente de alguns momentos mais fortes pela presença dos atores, em especial o costureiro).

Claro que, para completar a receita perfeita do “filme de arte contemporâneo”, Garrone vai escolher como registro formal este novo classicismo que é o do realismo hiper-recriado, que já discutimos bastante e que passa por uma reciclagem de uma série de procedimentos que, talvez ironicamente, remetem como origem primeira lá ao neo-realismo italiano (locações, não-atores misturados com atores, câmera na mão, etc). Só que hoje este realismo é pouco mais do que um índice, um modelo, ao qual se pode e vai somar sempre uma boa dose de estética trabalhadíssima (seja na composição de quadro e movimentos, seja no trabalho de pós-produção de luz e som), resultando num híbrido bastante eficaz para as grandes platéias, mas que pouco ultrapassa o lugar-comum da representação. Só que este “realismo rés do chão”, aparentemente desejado por Garrone para tratar das “pequenas vidas” da máfia que ele quer mostrar, sofre com uma curiosa dubiedade: o fato de que o cineasta tem clara admiração, senão pelos mafiosos em si, no mínimo por sua história cinematográfica. Por isso, Garrone quer jogar um jogo difícil de se comprar: o de fazer denúncia enquanto, efetivamente, glorifica e torna interessante visual e cinematograficamente as violências e códigos que denuncia (e aí, certamente a lembrança de Cidade de Deus, bastante citada desde Cannes, se justifica).

Curiosamente os melhores momentos de seu filme vêm justamente quando ele deixa um pouco de lado o “realismo” e se presta a desenvolver personagens ou a criar belas composições visuais (principalmente no uso da arquitetura dos bairros pobres) ou sonoras (pela trilha sonora pop-regional). Só que, ao contrário de um Scorsese, que assume suas raízes no meio do espetáculo americano (tão formador para ele quanto os pequenos mafiosos de sua vizinhança) e por isso mesmo nunca pretende “denunciar” nada, nem negar o seu fascínio por estas figuras, Garrone fica nessa gangorra confusa, neste jogo de morda e assopra: “como denunciar o que me fascina; por que sou fascinado pelo que me enoja”? Isso torna Gamorra, no melhor dos casos, uma experiência esquizofrênica sintomática de um espírito italiano, tomado de um espírito de culpa (profundamente católico, aliás). Mas, claro que seu óbvio e barulhento (literalmente) modelo de “choque e espanto”, não se enganem, é capaz de impressionar muitos – visto aí o Prêmio Especial do Júri em Cannes com direito a “renascimento do cinema italiano” atrelado.

Setembro de 2008

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