ensaios
O que é e o que não é
Breves notas sobre o caso Gomorra
por Francis Vogner dos Reis

Gomorra ganhou o Prêmio Especial do Júri em Cannes, prêmio que estimulou uma série de equívocos ao seu respeito, seja do marketing, que quer legitimar o filme em cima do “caso real”, seja o de muitos admiradores que dão a Gomorra papel central no recente cinema italiano, seja o de outros tantos detratores, que parecem comprar o discurso sensacionalista e criticar o filme a partir daquilo que efetivamente ele não é, como que respondendo a uma série de prerrogativas que supostamente excitam a valoração do filme de Garrone. Dizer que o marketing comete um desserviço é como dizer que a Terra é redonda, levando-se em conta – principalmente – que a sua estratégia é tripudiar em cima do “baseado em fatos reais”, ainda mais nesse caso, em que a matriz original é o livro reportagem de Roberto Saviano. Sensacionalismo pouco é bobagem: usa-se elementos do filme para se fazer conexões estapafúrdias (a comparação com Cidade de Deus é uma delas) e valorações grosseiras (relevância histórica e social em um tratamento “distanciado”). Mas o que mais impressiona é que a maior parte das discussões sobre Gomorra se concentra justamente nesses falseamentos:

- Não é semi-documental, não é observacional, não é filme político, não é filme policial. Ele não responde a um tipo de filme que se faz a partir de uma necessidade de apreensão do fluxo de acontecimentos (Serbis, de Brillante Mendoza, por exemplo) e nem do esgarçamento de situações, porque é um filme que se erige em cima de fatos mesmo que o tom e elementos corriqueiros e casuais venham ajudar a compor esses fatos – não “os fatos reais”, mas os fatos como um acontecimento cinematográfico, em outras palavras, uma técnica que tem o mundo como fato material e evidente.

- Sua matriz jornalística não contribui para dar mais veracidade ao registro (o dado formal), nem isso pretende, mas faz do fato um relato. O fato é o relato que procura dar relevo às imagens da máfia napolitana: de uma Nápoles feita de destroços e descampados, do condomínio paupérrimo de concreto, dos delinquentes que veem a própria vida como uma ficção (a referência é a própria ficção, tanto que imitam Tony Montana de Scarface), das crianças que encaram o trabalho no crime como uma espécie de curtição (a cena dos caminhões), do adolescente que acredita que entrar no crime é uma chamada à responsabilidade, do jovem que ainda vê tempo em se desvincular do serviço, até os mais velhos, derradeira e irremediavelmente atrelados ao trabalho com a máfia.

- O filme deve ao livro sim, mas não é reverente ao ponto de abrir mão de características muito próprias, como fez o Blindness de Fernando Meirelles, de buscar e expor sua diferença com o livro. Se texto do livro sugere imagens, Gomorra as tem como um princípio e como um meio. Talvez porque seja baseado em um livro-reportagem (um trabalho jornalístico), isso lhe dê não só liberdade, mas material e espírito necessários para se concentrar na ação, na ambientação e no gesto, ou seja, no fato, algo que interessava a cineastas historiadores-jornalistas como Samuel Fuller e Roberto Rossellini, que acreditavam na capacidade única de testemunho do cinema.

- Gomorra não é um filme de tese, porque em nenhum momento procura comprovar uma idéia sobre o seu tema. Se vemos a questão da truculência como cultura, instituição e política, por exemplo, é menos um estudo sobre isso e mais uma característica irrevogável daquela fauna social: idade média + modernidade = Nápoles de Gomorra

- Não há exatamente um distanciamento, mas um despojamento. É bom ver um cineasta que não se preocupa a toda hora em afirmar que está usando uma câmera de cinema, que faz um enquadramento com austeridade sem a necessidade de chamar atenção para sua suas composições em harmonia ou em crise. Se há sujeira não é ela um fetiche (Serbis de novo), mas uma característica de imanência, de confluência, sem falseamento entre tudo o que filma. Esse despojamento é a ausência de muletas artísticas. É um despojamento que não vimos em cineastas italianos “políticos”, “artísticos” e “relevantes” como Pontecorvo e Rosi, que apesar de estarem em um passado não muito próximo, são a referência.

- Existe uma grandiloqüência que não combina com a modéstia de filmes “artísticos” recentes como Leonera, O Silêncio de Lorna e A Bela Junie. Gomorra é pesado e desengonçado. Aparentemente desorganizado. O condomínio popular em que boa parte do filme se passa, os descampados a perder de vista, as fábricas (inclusive aquele achado brilhante que é uma fábrica de artefatos “clássicos” de gesso contra o qual um carro se estraçalha), tudo parece grande demais e até horizontal demais.

- Não é um filme de bom tom. Lembra um pouco alguns cineastas italianos da década de 70 como Castellari e Fulci, guardadas as devidas diferenças, claro. É bufão demais, apesar de que, pelo que coloca em questão e a demanda de nossa época, ele aparece e pode até ser entendido como um filme de “tema”. A ambição de falar de algo importante existe e é fundamental aqui, afinal de contas foi baseado em um livro-reportagem barra pesada e há aquele letreiro explicativo grotesco em seu final. Mas dizer que o filme se esgota nessa “propaganda” é coisa que não procede. Por que pouco se falou disso em Linha de Passe? Diferente da solenidade de Walter Salles, o filme de Garrone não tem medo da exasperação. Essa evidência não deixa de ser uma qualidade.

Janeiro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta