Gonzaga - de Pai pra Filho,
de Breno Silveira (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond
Realidade e melodrama
O tiro é certeiro, nos zóio do assum
preto. Em Gonzaga – De Pai pra Filho (2012), Breno
Silveira volta à boa forma da biografia e comete um belo
filme. Esqueçam o terrível À Beira do
Caminho, uma das bombas de 2012. Agora Silveira usa o mesmo
argumento de Dois Filhos de Francisco (2005): o amor
paternal, que tudo vence e tudo explica. Seu Francisco salvou
Zezé Di Camargo e Luciano da miséria, deu-lhes um
chão, um sonho. Por sua vez, Gonzaga – de Pai
pra Filho mostra que o rei do borogodó, o sanfoneiro
Luiz Gonzaga, também teve o pai que mereceu. Em vez de
apenas amar Seu Januário, gostava de esfregar o carinho
pelo velho nas fuças de Gonzaga Jr., o filho que sempre
desprezou.
Essa tensão psicotizante, capaz de levar qualquer moleque
ao hospício, era embrulhada em diferenças geográficas.
Gonzaga Jr. foi criado no Morro de São Carlos: malandro,
arruaceiro e bastardo. Gonzagão veio do roçado,
um bruto das Vidas Secas, e que pôs toda a ideologia
de Graciliano Ramos abaixo quando apostou nas próprias
pernas. Gonzagão é o macho pródigo, o homem
que inaugurou a cidade de Exu para o “Sul maravilha”
- o querido “Sul maravilha”, objeto de culto da Graúna,
personagem do cartunista Henfil. Tudo bem que Gonzaga fosse autor
da “Asa Branca”, o tal hino do Nordeste, mas aos olhos
de Gonzaguinha não passava de um bugre reacionário.
O oposto do grande ídolo para Henfil e demais companheiros
de Gonzaga Jr., que batiam ponto no DOPS, nos subversivos anos
70.
Vejam
que o rocambole de Gonzaga é imenso e, se vasculhado
com calma, esconde muito da alma brasileira no século que
se perdeu. Não é apenas a história contada
como princípio, meio e fim, mas a verdade absoluta de que
Gonzaga e Gonzaga Jr. são motores das próprias tragédias.
Ao colocar Pai e Filho um de frente para o outro, é impossível
não perceber que são entidades opostas. Em termos
de tempo (Gonzaga nasceu em 1912, Gonzaguinha, no baby boomer
1946), espaço (caatinga e Rio de Janeiro) e ódios
(Gonzaga odeia o fato de que o garoto talvez seja seu filho ilegítimo;
Gonzaguinha odeia o Pai por não deixá-lo entrar).
Breno Silveira lida com gente grande, tremenda responsabilidade.
Neste sentido, o hype breganejo de Dois Filhos de
Francisco se esgota rápido. Zezé Di Camargo
e Luciano não possuem estofo próprio para serem
vistos nas suas curiosidades e possíveis loucuras. Eles
aceitam a autoridade de Francisco. Simples assim. Seu Francisco
é o vate, o profeta, que joga luz nos meninos e os faz
brilhar na era Collor. Francisco é a criatura anônima,
abdicando de si para dar à prole. Em outras palavras, o
antagonismo acontece na família perante o mundo. Dentro
da família, há paz. Já com os Gonzaga, o
antagonismo é interno, a flor do mal.
O
Brasil pobre permanece, mas sem a sociochanchada de Era
Uma Vez... (2008) e as simplificações de À
Beira do Caminho. A biografia prévia foi positiva
para Silveira. Outros diretores populares partem do zero, com
o roteiro em branco: é o caso de Clery Cunha e Chumbo
Quente (1978). Lá, tínhamos a vida interiorana,
mestiça – tal qual Dois Filhos de Francisco
–, o mundão caipira, de Cornélio Pires e Amadeu
Amaral. Pragmático até o talo, Clery Cunha aproveitou
o sucesso dos cantores Léo Canhoto & Robertinho –
outra semelhança com Di Camargo e Luciano. Jogando um argumento
qualquer, a dupla virou sinônimo de pastelão, cheios
de cacos e marotagem. Dois Filhos e Gonzaga
não querem essa heresia. Estão presos aos fatos,
na linha de “quase-documentário”, em um temor
reverencial que poderia ter estragado o futuro dos filmes. Se
Dois Filhos é menos ambicioso, Gonzaga
lida melhor com os horrores da família desajustada. E o
poema de abertura – recitado por Gilberto Gil, nas trevas
dos créditos – deixa clara a tentativa de grandiosidade.
Quem
esperava já ter visto mitos demais em Gonzaga,
prepare as canetas e anote o próximo: o pai postiço.
De lambuja, no pacote das edípicas transações
do filme, encontramos o amor-estepe de Henrique e Leopoldina.
O casal arregaça as mangas e cria Gonzaga Jr. na xinxa.
Ocorre que Gonzaguinha era um agregado sórdido. Aquele
que poderia estar longe dali, mas era preso no cativeiro por Gonzagão,
o magnata que sustentava as despesas da casa. Por sua vez, Leopoldina
se contrapõe a Helena (a madrasta) e esta à Odaléia
(a mãe biológica, morta de tuberculose). Em Gonzaga
– de Pai pra Filho, a presença feminina serve
de contrabaixo, de avenida em que dançam os adoráveis
homens. Para aumentar o grau de neurose, o casal Henrique-Leopoldina
de fato amava o pequeno, independente de ele ser uma fonte prática
de recursos. Não bastasse isso, Gonzaguinha continuava
a nutrir a eterna busca (masoquista e espectral) pelo homem que
o testava à distância: o Pai. E, não bastasse
ainda mais isso, Gonzagão se mete em uma queda de braço.
Encara a macheza etérea do rapaz, que coleciona sucesso
atrás de outro, decolando em vida própria. Gonzagão
percebe que ele, o Rei-Sol, continuará majestoso, admirado
pelo plebeu que lhe ampara nos sonhos de grandeza e no frio do
ostracismo. Na história dos Gonzaga, as tantas voltas levam
o público à incredulidade, típica do melodrama
– razão de ser do longa-metragem de Breno Silveira
– e que, no entanto, vai muito além dela, criando
uma estranha vertente de realidade.
Novembro de 2012
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