in loco - 37o festival de gramado
Dia 4: “Índio que
ninguém viu é boato” por Rodrigo de Oliveira
Corumbiara,
de Vincent Carelli (Brasil, 2009) Antes
de qualquer coisa é preciso confessar uma estafa. O título do texto se refere
à frase de um indigenista em Corumbiara que resume uma prática que a FUNAI
utilizou por muito tempo na lida com populações desconhecidas, onde bastava um
registro fotográfico simples que comprovasse a existência de um único índio para
que determinado pedaço de terra fosse imediatamente interditado a qualquer atividade
branca. Mas a frase diz também sobre um “excesso de visualidade”, digamos, uma
questão judicial pragmática que, de trinta anos para cá, se transformou praticamente
num subgênero do audiovisual brasileiro, cada vez menos servindo para atestar
a ocorrência de um objeto que para alardear a plataforma onde se localiza seu
observador. Uns filmes com caráter estritamente político-ativista, outros tantos
com algum tipo de gerência estética sobre os ambientes que filmam, boa parte desses
sem qualquer pensamento em torno do tipo de papel que uma equipe de cinema exerce
no interior de uma tribo ou de como o material que surge daí ainda não é um discurso
por si só, não se basta. A estafa se refere justamente a superexploração temática
do índio e ao subaproveitamento do mundo de narrativas e experiências possíveis
uma vez em contato com esse universo, de tal modo que boatos como os sugeridos
pela frase do indigenista são hoje quase impossíveis. Qual índio ainda não foi
visto? Por quantas maneiras diferentes o registro em filme ainda poderá dominá-lo,
num exercício de colonização retardatária e um tanto inconsciente? Qual é o tamanho
que uma boa intenção precisa ter para poder se eximir dessas questões?
É
uma crise séria, mas que às vezes se manifesta de maneira um tanto primária –
ou, para finalmente chegar a Corumbiara, no reconhecimento desarticulado
e muito honesto de uma fragilidade. O filme de Vincent Carelli é uma espécie de
Santiago sem a afetação de produto de meta-arte profunda. A situação é
praticamente a mesma: o diretor começa a filmar em 1986 uma série de expedições
em Rondônia que tentam encontrar vestígios de um massacre indígena que ninguém
confirma que ocorreu, e que não pode ser comprovado porque as vítimas simplesmente
desapareceram. Mas o processo é arquivado, os culpados nunca foram descobertos
ou punidos, e então Carelli abandona aquelas imagens, para só retomá-las 20 anos
depois. Sobre as imagens de arquivo remontadas, há uma narração em primeira pessoa,
do próprio Carelli – novamente sem o desejo de literatura da reparação de Santiago,
mas num tom informal, quase como se o diretor estivesse comentando as imagens
ao vivo, sem ler um roteiro. Já no fim do filme, o diretor aparece em 2006 reencontrando
o indigenista Marcelo Santos, seu companheiro na expedição. Numa montagem de plano
e contraplano, eles comentam a descoberta de um único remanescente de uma tribo
desconhecida, que até hoje permanece um mistério. Carelli vira-se para o amigo
e, falando sobre as cenas que gravou do índio (e que garantiram a proteção da
terra em que ele vivia), diz um simples: “que filhos da puta a gente era”, invadindo
daquele jeito o espaço do outro, mesmo tendo certeza absoluta que aquele gesto
poderia salvar a vida do índio e que o trabalho do indigenista/cineasta equilibra
partes iguais de preservação e destruição. Há a revisão crítica
de um cineasta iniciante (em 1986 Carelli estava apenas começando os trabalhos
no projeto Vídeo das Aldeias), uma tentativa de reconhecer as inabilidades no
trato com os índios, um questionamento das razões que o levaram ao registro, mas
isso tudo acaba sendo um tanto secundário uma vez que cheguemos às imagens que
o diretor acumulou nesses 20 anos. São elas, no fim das contas, que se encarregam
daquilo que Corumbiara tem de mais impressionante: o verdadeiro acúmulo
está nos corpos de índios e da equipe do filme, a narrativa real é a do processo,
e não das pontas que o cercam (a disposição em alardear um massacre e a recuperação
desse material perdido anos depois). É a inviabilidade de atestar uma informação,
de cumprir uma tarefa militante, que libera o olhar da câmera para lugares que,
de outro modo, ele nunca se permitiria visitar. Corumbiara parece só existir
enquanto cinema porque fracassou antes como política, e ainda que se mantenha
viva a crença da intervenção social neste filme que sobreviveu ao tempo, ela já
não tem mais o vigor institucional nem a ingenuidade ativista de antes. Corumbiara
é, acima de tudo, um filme sobre mistério e descoberta, sobre medo e deslumbre.
As interações comandam o jogo, e parecem bastante tradicionais quando se vê em
cena o confronto entre os membros da equipe, entre indigenista e cineasta, ou
de ambos com as instituições de poder estabelecidas (seja no contato com o advogado
dos madeireiros que impede o acesso às terras onde os índios desaparecidos estariam,
seja no meio dos trabalhadores dessa madeireira numa cidadezinha perdida no coração
de Rondônia – há um impacto, uma faísca, mas não é nada que já não tenhamos visto
antes ou que podemos supor no momento em que essas figuras aparecem na imagem
pela primeira vez). Mas aqui se está tratando de uma tribo dizimada, que o filme
reencontra com pouquíssimos membros sobreviventes, que fala uma língua difícil
até mesmo de identificar, quanto mais de compreender, que se vestem de maneira
nunca anotada antes nos livros de catalogação. No fim, um caso insolúvel até hoje:
um único índio, cuja procedência é desconhecida e que tem hábitos diferentes de
todas as outras tribos existentes no país, um índio que recusa o contato, que
abraça o anonimato, e contra o qual a equipe não pode fazer nada a não ser experimentar
o mistério, o medo, o encanto quase juvenil. É esse, talvez,
o grande trunfo da narração de Vincent Carelli, em toda sua informalidade e franqueza.
Seu testemunho em off até se dispõe a rever certos métodos de abordagem
e de postura, mas há algo na própria materialidade dessas imagens que impede a
distância absoluta, a análise clínica. Ao contrário, Carelli resgata ali também
um sentimento de descoberta e de deslumbramento que não mudaram tanto assim nos
20 anos – e nem poderiam, dada a força do material, dada a incompletude do projeto.
Ele diz, em algum momento, que ao ver pela primeira vez os índios há anos buscados,
“o Marcelo entra em pânico”, e aqui não importa tanto que tenhamos a imagem clara
do indigenista acuado pela possibilidade do contato com seu objeto quase obsessivo,
mas sim que o registro (em vídeo magnético, informal, tremido) se assuste também
e, mais ainda, que o próprio Carelli, sentado no conforto de uma sala de edição
duas décadas depois, consiga reviver este mesmo sentimento pela palavra, pelo
tom da voz. As imagens falariam por si só, e elas falam
muito: a aproximação de dois jovens índios num plano de filme de ficção científica,
estarrecedor; um velho de outra tribo que consegue identificar a língua falada
por estes jovens ao ouvi-la num gravadorzinho arranjado pela equipe; um ritual
espontâneo criado a partir do uso de semente de angico (um forte entorpecente,
pelo que se pode ver); o olhar inescapável do “índio do buraco”, este sobre o
qual nada se sabe até hoje, e que permanece acuado dentro de sua oca para então
receber de Vincent um dos closes mais bonitos do cinema brasileiro recente (e
é bonito com toda a consideração do “que filhos da puta a gente era”, e sobretudo
porque definitivamente não foi produzido pensando na beleza estética, num potencial
dramático ou o que quer que seja). Mas o discurso de Vincent também fala, também
é bonito justamente porque não tem a menor vontade de sê-lo, e Corumbiara
prova que um não poderia existir sem o outro, que imagem e fala se atravessam
e se condicionam, sem nunca parecerem apenas ilustrar uma a outra. No
fim, restam os corpos. Aquela jovem atrevida e falante do primeiro registro em
1986 ressurge serena e maternal anos depois, o peso da idade nos olhos, na ausência
de um sorriso antes sempre presente, e quando a flagra com o filho pequeno (“a
quem se dedica integralmente”), Corumbiara novamente se espanta e se deslumbra:
talvez seja o único momento em que se tenha filmado a felicidade em estado puro,
e este é apenas mais um dos mistérios desta história. Há ainda Marcelo Santos
e Alemão, os indigenistas que vão deixando no corpo cada marca dessa jornada com
um quê de quixotesca. Há Virgínia Valadão, antropóloga e esposa falecida de Carelli,
mostrando os seios às duas índias que se espantam com sua brancura, mas que reconhecem
num dado simples da anatomia alguma proximidade. Os anos os tornaram mais velhos,
mas Vincent Carelli duvida que os tenham deixado exatamente mais sábios. Corumbiara
chega ao fim exatamente como começara duas décadas antes: voluntarioso, com
mais dúvidas que certezas, e emocionado pela simples incapacidade de se fingir
distância artística ou científica diante do extraordinário que se oferece aos
sentidos. Restam os olhos absurdos do “índio do buraco”, lembrando: não há excesso
de visualidade que esconda o fato de que às melhores histórias ainda está guardado
o direito à invisibilidade absoluta. Agosto de 2009
editoria@revistacinetica.com.br
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