Gran Torino (idem), de Clint Eastwood (EUA, 2008)
por Francis Vogner dos Reis

Questão de vida e morte

“Everything dies, baby, that’s a fact
But maybe everything that dies
some day comes back
Put your makeup on, fix your hair up pretty
And meet me tonight in Atlantic City”
(Atlantic City, Bruce Springsteen)

O que há de mais tradicional no cinema de Clint Eastwood não é nada daquilo que remete a um certo classicismo americano, mas seu ponto de vista radicalmente duro e amargo: o cinema é crítico da realidade e a ficção é a sua prioridade. E, se a violência e a morte são fetiches da vulgaridade contemporânea que assola tanto os discursos bem esclarecidos quanto a truculência dos Datenas e CNNs, nada mais crítico à estupidez predominante dos discursos prontos do que o cinema de Clint Eastwood. Só que ele não é Paul Verhoeven, que ri e faz troça com o discurso da ordem por meio das imagens fabricadas, sobretudo da TV. Interessa a Eastwood a maneira como os discursos e estereótipos se configuram na vida, de como a cultura da violência e, de maneira mais complexa, a radicalidade do tempo e a eminência da morte são falseados a partir de discursos formatados, vazios e de meias verdades. Apesar de tudo isso (e contra tudo isso), o diretor ainda acredita que é possível o confronto. Ele coloca problemas tão radicais com os quais o cinema não está muito acostumado a lidar, pelo menos hoje, com tanta clareza: a morte, o passado e o tempo presente. Poderíamos falar que John Ford e Howard Hawks trataram desses temas, mas eles eram cineastas fundadores, e Clint Eastwood é o oposto de um “fundador”. Não há plenitude de um mundo novo e de um olhar inédito, sequer ele é um cineasta crepuscular.

É natural, portanto, que este confronto em Gran Torino evoque uma série de questões, de máscaras, que convém colocar em Clint Eastwood: diretor de metier formidável que dialoga com a tradição do cinema americano; o personagem que, entre a reputação duvidável e a opacidade de pregressos eventos traumáticos, é obrigado a enfrentar escolhas morais; a memória de um passado mítico e uma evidente decadência da sociedade contemporânea. Existe, portanto, um "repertório Eastwood". Não há dúvida que isso é valoroso e esclarecedor, só nem sempre é utilizado com propriedade, se transformando muitas vezes em uma espécie de certificado de legitimidade, em discurso. Como uma mediação entre o filme e o olhar, já que a limpidez “clássica” de Eastwood (apesar dos alçapões narrativos) às vezes parece ordenada o bastante – mesmo com os abismais flashbacks, quando existem – para não submeter o material à crise que é necessária para se extrair daí alguma particularidade. O fato é que o cinema de Eastwood, e Gran Torino é muito franco nisso, pede, antes de qualquer coisa, que seja encarado frontalmente.

Aqui tudo é elementar, é coloquial. O ideal (o carro Gran Torino, mito) é aflitivo, porque o real é predominante. Diferente de A Troca, dessa vez o cineasta faz o que sempre soube fazer de melhor: ir direto ao ponto. É como se a história de Walter Kowalski e de sua amizade com o garoto chinês que tentou roubar seu carro, um Ford Gran Torino 1972, pudesse somente caminhar pra frente, ser uma sucessão de escolhas. O diretor ainda acredita que uma história, uma narrativa, é capaz (apesar de tudo) de catalizar uma série de sentimentos que são difíceis de nomear. Por isso, é indispensável que se olhe de frente todas as coisas, com todas as dificuldades que isso acarreta. Eastwood procura, primeiramente, o homem, e, se para ele as questões não são novas, os desafios são. Por isso, opta pela mais arriscado, e no caso de Eastwood, o arriscado é o mais simples, o mais elementar que às vezes pode soar como simplista e até medíocre. Por isso que muitas vezes parece haver algo errado ou mal feito. Diálogos explicativos, crueldade dos personagens secundários – que parecem mais estereótipos necessários que justificam as ações dos personagens centrais –, algumas soluções dramáticas muito pontuais e “eficientes” e etc (uma série de coisas que inclusive jáforam argumentos dos detratores de Menina de Ouro).

Vendo o conjunto do filme, mais com rigor do que com gosto, é óbvio que essas coisas são menos um defeito do que uma economia necessária. Se a família de Walt Kowalski é estúpida, sabemos que em parte é uma relação viciada com um velho que grunhe e que não é flor que se cheire. O próprio conflito que se estabelece entre a gangue dos chineses “hmong” e o garoto Thao, vizinho de Kowalski, parece ser da ordem da convenção. Se esses pontos de conflito parecem banais, é porque, realmente, são banais – porque prosaicos, diretos, sem nuances. Quanto mais é modesto o corpo do filme, mais consegue tensionar suas energias vitais. Só um cineasta concretamente objetivo equilibra um trabalho mais burilado no coração do filme e faz dessas bordas sua sustentação, não sem integridade. Para o diretor, a parte não existe sem o todo, e entre um e outro é possível sentir (não há outra palavra mais honesta para definir) uma vertigem, uma instabilidade que constitui o desespero e a melancolia – sempre juntos – de Gran Torino, e é o que faz a particularidade do diretor Clint Eastwood.

É disso que nasce uma semelhança com Howard Hawks: o paradoxo. Ao mesmo tempo em que ele é absolutamente claro no que apresenta, consegue ser direto o bastante para deixar que o que é obscuro seja eminente e latente. Exemplos são os encontros do protagonista ou a sua troca de olhares com as gangues: em princípio ele é um velho ressentido, reacionário e armado, mas aos poucos revela frieza, sadismo e uma pulsão um tanto sombria à violência, assim como delinqüentes poseurs são potenciais assassinos. Esses matizes não são questão de “humanizar” os personagens ou “complexificá-los" (como se isso resolvesse alguma coisa em termos dramáticos), mas de fazer na verdade com que essa caracterização tenha fissuras. A ilusão da clarividência “clássica” se dissolve quando se vê que a eles não temos acesso total. Esse mistério que perscruta a violência da vida/morte. A violência não é só uma atitude pontual (socar, ameaçar, matar), mas estados que estimulam escolhas, às vezes necessárias e incontornáveis (Os Imperdoáveis), às vezes injustas e desesperadas (Sobre Meninos e Lobos).

O desafio para quem vê Gran Torino é o de não ser como o padreco ruivo, que começou declarando saber o que era a vida e a morte, e terminou achando que realmente havia aprendido alguma coisa sobre o assunto simplesmente porque testemunhou a vida de Walter Kowalski. O filme mira a singularidade da experiência, e não há experiência mais decisiva, singular, derradeira, inominável e, sobretudo, solitária, do que o ato de morrer. Se é um filme sobre o presente e sobre o morrer, o diretor não acredita que morrer seja um evento isolado, o grande ato do filme, que daria a nós, espectadores, o consolo de vermos cumprida a última missão do herói. Entre tantos filmes de Clint Eastwood que têm a sombra morte como algo decisivo e por vezes irrevogável, é Gran Torino que certamente que tem uma entrega mais desconcertante. Por que? Porque ela está presente em cada gesto, em cada atitude, em cada diálogo, em cada passagem de tempo. A consciência permeia todo o filme: da morte como fato, a morte como destino, a morte como um processo, a ameaça da morte. Admiravelmente a cena que encerra o destino de Kowalski é trágica e patética ao mesmo tempo: não é possível esperar um duelo repleto de significado, por isso, como em Sobre Meninos e Lobos, o papel de um filme é do escândalo, não de fazer justiça. A morte não pode ser um signo, no cinema ele é uma questão de montagem. Ela não é uma categoria – passível de ser mesurada, avaliada, dissecada - mas uma ação. E, no cinema de Eastwood, a ação é a única coisa existencialmente significativa.

Abril de 2009

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