Gran
Torino (idem), de Clint Eastwood (EUA, 2008)
por Nikola Matevski Potência
do afeto
Há décadas a obra de Clint Eastwood é
um corpo consistente que lida com motivos recorrentes (morte, justiça, paternidade,
violência, velhice), e sua aparição em Gran Torino não é inédita. O final
de Josey Wales – O Fora da Lei, por exemplo, já problematizava as implicações
da vingança nos tiros dados em falso pelo personagem principal – um gesto que
Gran Torino parece citar diretamente (fora a similar imersão na coletividade
e o humor). A vingança também é um problema de violência e justiça (Os Imperdoáveis)
que possui desdobramentos nas instituições sociais e políticas (Um Mundo Perfeito,
Crime Verdadeiro, Poder Absoluto, Sobre Meninos e Lobos) e implica,
de maneiras diferentes, no pesadelo da morte (talvez todos os filmes dos últimos
20 anos?). Por isso tudo, reduzir Gran Torino a uma conversão repentina
de Clint Eastwood ao pacifismo, tendo como referência básica o personagem de O
Perseguidor Implacável, é tão impreciso e equivocado quanto dizer que Menina
de Ouro é um filme sobre a eutanásia. As insistentes comparações com Dirty
Harry fazem pouco sentido, a não ser, talvez, no que cabe à atuação. Porque, pela
primeira vez em muitos anos, voltamos ao ator dos lampejos de fúria, às falas
de boca quase fechada e aos dentes cerrados. Mas agora surge uma nova cor na paleta,
um minimalismo primoroso dado na voz rouca: tão simplesmente um grunhido cavernoso
desprovido de palavra que potencializa a dramaturgia (na cena com xamã, na amarga
comemoração de aniversário com os filhos, para citar alguns entre tantos exemplos).
Em Menina de Ouro, há uma cena em que Maggie Frizgerald
(Hillary Swank) faz uma pergunta a Frankie Dunn (Clint Eastwood), enquanto um
terceiro personagem, Scrap (Morgan Freeman), observa o encontro à distância. Acompanhamos
o diálogo e vemos planos cobrindo esses três pontos. Então, no que poderia ser
um contraplano e fala de Dunn, encaramos apenas o seu rosto monolítico, o olhar
perdido por cima dos óculos, a câmera em lentíssima aproximação. É assim nos filmes
de Clint Eastwood: uma pequena torção na forma,
uma sutil duração que nos instala no abismo dos personagens (o que, no caso de
Dunn, envolve uma filha). Em Gran Torino, um destes momentos está num fade
que nos leva de “ain’t she a sweet” para as
latas de cerveja vazias, Walt Kowalski (novamente Eastwood) abandonando o pôr
do sol na varanda para entrar na casa acompanhado do cão. Também temos algumas
conversas com o padre Jovanovich que terminam em mansas movimentações de câmera,
além dos últimos instantes da cena em que o xamã hmong lê a vida de Kowalski (que
escuta – e nós com ele – o diagnóstico assombradamente). Outros planos nos inserem
na subjetividade: os exames médicos (que não conseguimos ler com precisão) depois
que Kowalski fala por telefone com o filho (conversa que não supera a rotina protocolar);
o bolo (“Happy Birthday Daddy”) e os panfletos dos asilos que nos levam ao zoom
no rosto de Eastwood em ebulição; a vizinha Sue que retorna a casa (e o derradeiro
choque que se instala). Gran Torino é pontuado por essas discrições formais
que evocam o submerso e fazem a cena respirar junto ao seu personagem, numa maestria
daquilo que é sentido, mas não é dito. Assim alcançamos a magnitude humana de
Walt Kowalski, um idoso solitário, racista e grosseiro em descompasso com o mundo.
A
visão daquela varanda é, para ele, assustadora (muito diferente da almejada pelo
Little Bill de Os Imperdoáveis, por exemplo):
uma Detroit ocupada por imigrantes que antagonizam a América que Kowalski e seu
quintal de grama aparada, sua casa com bandeira hasteada e seu Ford Gran Torino
na garagem representam. Mas numa cidade não é possível viver ilhado: o padre bate
à porta em busca de confissão, alguém tenta roubar o carro, as brigas da vizinhança
invadem o pátio. No primeiro caso, a resposta é ríspida ("virgem de 27 anos
que gosta de segurar a mão de senhoras supersticiosas e prometer-lhes a eternidade");
no segundo e terceiro, é a defesa da propriedade, um rifle apontado na cabeça.
No entanto, o círculo de convivência foi disparado: o padre voltará com sermão
afiado sobre vida, morte e salvação da alma; o vizinho Thao confessará a tentativa
de roubo; e os degraus serão inundados com levas de comida em sinal de agradecimento.
Kowalski também é movido por uma ética própria que, na interpretação de Eastwood,
ganha dimensão mítica.
Quando intervém para resgatar a vizinha Sue, cercada
por uma gangue, a presença de Eastwood evoca um justiceiro que parece acordar
a quintessência de um outro tempo (e outras personas cinematográficas do ator).
Mas, na cena seguinte, o contraste, a lição do mundo de hoje: dentro da caminhonete,
o caubói é desmontado pela menina oriental de caráter forte que desfaz, um por
um, os preconceitos sobre os imigrantes hmong. A cena é também uma eclosão de
amizade. O laço de vizinhança torna-se laço familiar e, no caso de Thao, acarretará
numa paternidade deslocada. Kowalski é um homem maculado (pela Guerra da Coréia
e por uma relação oculta até os momentos finais) que, como os personagens de Howard
Hawks, não quer queimar-se duas vezes no mesmo lugar. Mas a inevitabilidade da
convivência o leva para esse lento processo de entrega, em que as manifestações
de preconceito dadas no palavreado bruto escondem a potência do afeto. Esse
movimento é ajudado por um senso de humor fino que paira sobre quase todas as
cenas e ganha maior frontalidade na barbearia, quando Thao deve aprender a "falar
como homem" a partir dos insultos trocados entre Kowlaski e seu amigo. Thao
(como Maggie Fritzgerald) também será confrontado pelo personagem de Eastwood
(no porão durante uma festa) e aprenderá um trabalho (jardinagem, manuseio de
ferramentas), mas sempre lidando com uma camada de humor turrão e dissimulador.
A vivência entre os personagens concretiza-se fora das instituições previstas
– na família adotiva, na justiça da ética pessoal, no sacrifício fora da igreja.
O encontro com o desconhecido xamã é mais certeiro que o frio momento de penitência
no confessionário. A relação com o padre Jovanovich é estabelecida longe da Igreja,
afastada dos mecanismos institucionais estanques (tampouco será nas dez ave-marias
e cinco pai-nossos prescritos que residirá a grandeza de Walt Kowalski). A polícia
é contaminada pela estupidez sistêmica e a família é um beco sem saída; os indivíduos
debatem-se na ponta das estruturas que sozinhas nada resolvem. Os
limites das categorias dão lugar à universalidade do afeto – e também da selvageria.
Diante dela, Kowalski pergunta-se abalado e cercado pelos vizinhos orientais “Sabia
que isso iria acontecer. O que estou fazendo aqui?”. Quando Sue retorna à casa,
o personagem interpretado por Eastwood descerá (socos, pontapés; as mãos sangrentas)
definitivamente ao abismo, nas imagens mais soturnas do filme (Tom Stern na fotografia).
Alma sem chances de recuperação: a solução do problema é uma impossibilidade tão
grande quanto aquela de Menina de Ouro e igualmente levará a uma ação extrema,
mas nesse caso aplicada a si, não ao outro. O ato, que novamente acorda presenças
míticas de Eastwood, é também uma passagem de bastão (Honkytonk Man), uma
sucessão que nos leva a Thao e seu futuro incerto, um dos mais belos planos finais
da carreira do cineasta. Os filmes
de Clint Eastwood tornaram-se essa organicidade e leveza de forma que pode ser
modelada com cada vez menos obrigatoriedade das convenções – ou, em outras palavras,
com mais liberdade (de gênero, de posicionamento de câmera, de organização de
cena, de atuação). Ver Gran Torino é ser testemunha desse movimento
permanente de vitalidade que há muito deixou de ser demonstração hábil do classicismo
para expandir-se acompanhado da maturidade do realizador e das mudanças no mundo
que o cerca (e do país em que vive) sem jamais deixar de ter seu principal foco
na humanidade de sua gente. Abril
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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