edição especial curtas brasileiros 2009/2010
“Me dê as flores em vida”
por Rodrigo de Oliveira


Guilherme de Brito, de André Sampaio (Rio de Janeiro, 2008)

Passei muitos feriados prolongados em Conservatória quando era pequeno. O sítio da família ficava no meio do mato, afastado da cidade, e para ela só íamos à noite. Chegar ali, com a perspectiva de um menino que enxerga tudo maior do que realmente é, na vila mal iluminada, cheia de ruelas de pedra bruta, casario antigo, cujo acesso só se dava ao atravessar um túnel, carregava a impressão de uma viagem no tempo, até um feudo medieval qualquer (coisa que estudava em História na época). A impressão definitiva, no entanto, vinha das serestas, as mesmas que Guilherme de Brito filma em seu trecho final. É possível que eu tenha testemunhado uma das apresentações espontâneas do gênio carioca por lá, mas disso não me lembro. Ficou só a imagem de uma procissão noturna, arrastada, lamuriosa, que mais tarde fui associar aos filmes de zumbi, se estes fossem pacifistas, do bem, se o caráter de morto-vivo pudesse ser vestido apenas durante as canções e depois retirado para que a vida seguisse normalmente.

Se aquele pedaço do interior do Rio de Janeiro era irmão involuntário de uma Europa passada, não havia dúvida que aqueles cavalheiros e aquelas damas cantando e tocando não seriam nada menos que sua realeza. Quando Guilherme de Brito surge em cena pela primeira vez no filme de André Sampaio, logo sob os créditos de início, a suspeita se confirma. Alto, lívido, esguio, caminhando devagar e elegantemente, Guilherme parece um príncipe, desses que seguem habitando seus castelos muito tempo depois de sua morte – habitando, nunca assombrando. O material foi filmado no ano 2000, quando André ainda cursava a universidade, e permaneceu sem finalização até dois anos atrás, quando um festival de cinema e música de Conservatória decidiu bancar o processo. Guilherme morreu em 2006, aos 84 anos, e nunca chegou a ver o projeto terminado. O filme, no entanto, nunca se aproxima da estatuária, não é um “monumento ao artista desconhecido” cujo brilhantismo é notável à primeira audição de uma de suas músicas. É Guilherme de Brito, ele mesmo, o castelo da ilusão de termos o compositor ainda por aí, andando pelas ruas, contra todas as previsões – inclusive as suas próprias.

Boa parte da obra mais famosa de Guilherme, a que compôs junto de Nelson Cavaquinho, não nega um aspecto fúnebre que parece incontornável para quem as escreveu. O auge de uma carreira, o respeito da comunidade, eventualmente até a alegria de um amor, isto tudo só existe para se confirmar que a passagem para a morte será sentida pelos que ficam, mas que a memória dos mortos tem um prazo de validade (“Quando Eu Me Chamar Saudade” diz que os amigos dirão que o falecido tinha bom coração, mas que “depois que o tempo passar, sei que ninguém vai se lembrar que eu fui embora”). Num encontro com Juarez de Brito, Guilherme fala da canção “Última Rodada”, composta num momento de tristeza absoluta, de doença e de confronto com o fim, que logo recebeu do amigo uma resposta também em forma de música, “Depois dos Quarenta”, em que o parceiro ordena que Guilherme “pegue o violão e cante a verdade” porque ele, como este texto e o filme, acredita que “quem foi rei nunca perde a majestade”.

Guilherme de Brito oferece meios para a permanência. O compositor fala de sua impressão de menino ao ver Noel Rosa cantando com seus amigos nos bares de Vila Isabel e de querer fazer o mesmo, mas se desviar logo ao lembrar do pedaço de carvão no bolso de suas calças curtas, correndo para desenhar pelos muros e calçadas. André Sampaio replica esta memória com a imagem de um menino, hoje, desenhando o perfil tão característico de Noel no asfalto, e esta operação não parece muito diferente das animações que o filme faz com as várias pinturas que Guilherme realizou ao longo da vida – em épocas distantes, garotos admirados com o som, mas que, dispondo apenas da produção e manipulação de imagens, ecoam nelas aquilo que paira sobre os ouvidos. Essa admiração desbragada estava presente também em outro documentário “careta” de André Sampaio, Estafeta, sobre o cineasta Luis Paulino dos Santos. Como lá, o diretor parece ceder a um instrumento de identificação e projeção sempre distante de seus projetos mais anárquicos (O Palhaço Xupeta e Polêmica, por exemplo).

Esta identificação está só um passo além do espanto do menino que um dia eu fui, adicionada aí a consciência de se estar diante de uma grandeza que não se explica, mas que se oferece ao olhar e eventualmente até ao testemunho – como os fantasmas que escolhem bem aqueles para quem aparecerão. Quando no museu que leva o nome do compositor, vemos Guilherme de Brito cantar com seus colegas de violão a “Canção para Conservatória”, o plano se perde nas flexões do músico, nas entradas e saídas de quadro dos violeiros, na platéia imediata, enfurnada num espaço minúsculo e cantando em uníssono, para muito tempo depois revelar atrás da porta de madeira que dá para a rua uma pequena multidão de ouvintes, hipnotizados com o espetáculo. E se há um valor em Guilherme de Brito é o de tão naturalmente nos fazer também parte deste milagre – sobrenatural apenas na medida em que pode ser revivido integralmente a cada vez que o filme for visto. A emoção que o filme provoca é menos pela empatia com a figura e pela música que ouvimos e mais por nos mostrar como o cinema de fato pode produzir o eterno.

Março de 2010

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