admirável mundo novo
Ouça o disco, jogue a música
por Renata Gomes

Guitar Hero (Harmonix/Red Octane, EUA, 2005/2006/2007)

A guitarra elétrica, mais do que qualquer outro instrumento, parece invocar mundos imaginários completos, que atravessam gerações inteiras até se tornar sinônimo de rock ‘n roll. De lá pra cá, tantos de nós sonhamos silenciosamente virar guitarristas, que o mundo viu a emergência do incrível esporte da guitarra imaginária – a “air guitar”. É com esse universo de desejos que parece querer dialogar o game Guitar Hero, um “jogo de ritmo” que simula o ato de tocar guitarra dentro do contexto do rock. O primeiro game da série surgiu em 2005, para o Playstation 2, e se tornou um dos mais vendidos e cultuados da história, dando espaço ao segundo, lançado em novembro passado, também para o PS2 e, este ano, para o Xbox 360. Como último game da franquia sob sua execução, a Harmonix acabou de lançar o Guitar Hero Encore: Rocks the 80s. O próximo e já anunciado Guitar Hero III deve vir ao mundo no ano que vem, sob a égide de novos desenvolvedores.

A idéia não é completamente original, mas o que de cara separa Guitar Hero de qualquer congênere para console ou PC é seu controle: uma guitarrinha que, no PS2, reproduz em miniatura o modelo SG da Gibson, materializando, por fim, o elo entre o faz-de-conta e o jeito de corpo que demarca o ato de tocar guitarra. É o controle-guitarra o que faz toda a diferença, pois, embora também seja possível jogar Guitar Hero através do joystick padrão do Playstation 2, o ser-jogado aqui passa inteiramente por esse objeto liminar que é a guitarra, e nos coloca noutra chave, comunicando-se diretamente com o corpo, trazendo o jogo para esse entre. A partir disto, dá-se toda sua quase impecável “jogabilidade” – tradução do neologismo inglês “playability”, que tenta dar conta do ser-jogado que define um game, para aquém e além de qualquer outro aspecto tecnológico ou cultural.

Ironicamente, no Brasil, não se pode dizer que a popularidade do jogo se deva ao controle-guitarra, uma vez que, aqui, sintomaticamente, mesmo no “mercado paralelo” (essencial para o consumo local de jogos), sai por algo em torno de R$400 – quantia suficiente para se comprar uma guitarra de verdade, ainda que “genérica”, usada e, ok, bem ruim. Nos Estados Unidos, ao contrário, o controle SG é vendido no pacote do jogo oficial por cerca de US$80 ou, separadamente, por algo entre US$30 e US$40. Tais preços, razoáveis para o mercado americano, garantiram a popularização do game, indo de encontro à tendência dos jogos com acessórios que, vendidos em separado e por altos preços, acabavam por nunca conquistar muitos adeptos.

O controle SG tem cinco botões coloridos no braço e um no corpo, além de uma alavanca de distorção. Na tela, numa espécie de partitura-em-movimento, cores e posições emulam “notas” e “acordes” a serem formados no braço do controle-guitarra, enquanto se “dedilha” a “corda” no corpo do “instrumento”. Em diversos graus de dificuldade, implementam o melhor da jogabilidade do gênero: a capacidade de aliar ritmo, percepção visual e coordenação motora, tudo ao mesmo tempo. A partir da guitarra – e, em medida bem menor, com o joystick – a jogabilidade de GH premia algumas das mesmas competências de um guitarrista “de verdade”: musicalidade, ritmo, concentração, a capacidade, enfim, de se compor com o instrumento, estabelecendo, a partir do corpo, uma conexão poderosa entre imaginação e fluxo.

O trunfo do jogo está em simular essas habilidades num grau bem mais baixo de complexidade – porque, afinal, se fosse preciso um talento muito especial, iríamos direto às guitarras “de verdade”, aos palcos “reais”. Com essa premissa, GH simula, em seus quatro níveis de dificuldade, medidas exemplares de complexidade para manter o jogar naquele limiar indescritível: difícil o suficiente para apresentar-se como desafio a ser superado, fácil o suficiente para não nos fazer abandonar o jogo. Nesse universo, tanto os adolescentes de cognição mutante, quanto adultos com um mínimo de coordenação olho-mãos são capazes de cumprir os desafios impostos pelo jogo e, através dele, encarnar o herói da guitarra. (Contudo, tendo conseguido até agora superar apenas o nível médio – e não sem alguma repetição e esforço – começo a suspeitar que, talvez, para superar os níveis “difícil” e “expert”, seja necessária uma habilidade manual digna de um deus da guitarra...)

No caso de Guitar Hero, para ajudar o percurso entre mímica e espetáculo, há todo o entorno, a começar, obviamente, pela seleção musical. Logo no primeiro set list, nos deparamos com clássicos da cultura roqueira, como “Smoke on the water”, do Deep Purple, “I wanna be sedated”, dos Ramones, e “I love rock’n roll”, “tornada famosa”, como diz o próprio game, por Joan Jett e os Blackhearts. A denominação, aliás, é um eufemismo interessante: por questões pertinentes essencialmente à esfera dos direitos autorais, nenhuma das pérolas do rock da primeira versão do jogo está em sua versão original e sim em versões cover especialmente produzidas para o game – que fazem de tudo para se confundirem com as originais, do timbre vocal ao arranjo. Depois de acumular alguns pontos, aliás, é possível “destravar” um documentário sobre a gravação das músicas, videozinho revelador tanto da competência dos americanos quando o assunto é música pop, quanto da total aceitação do processo de clonagem das versões originais. Na segunda versão do jogo, o peso dos royalties parece ter sido maior e as pérolas diminuíram consideravelmente, mas não sem dar a nós, roqueiros de mentirinha, o prazer de dedilhar a introdução de “Sweet Child o’Mine”, do Guns’n Roses, e, se você for mesmo o tal, jogar os solos mortais de “Free Bird”, do Lynyrd Skynird. Ainda assim, algumas canções estão presentes na versão original – mas nada que um fã menos ardoroso do rock pudesse reconhecer de cara.

Na tela, além da partitura-em-movimento, há a imagem de nosso próprio avatar, que toca em correspondência direta com nossa performance, e o público e sua reação, também em resposta àquilo que fazemos – ou deixamos de fazer. Nosso avatar – que escolhemos entre tipos pré-determinados e bem caricatos – só toca quando nós tocamos. Após alguns erros do jogador, vemos nosso representante no mundo virtual balançar a cabeça, decepcionado com a sua/nossa incompetência.

É um misto de frustração e culpa vê-lo em tal situação em cima do palco: é para ele – e para o “eu” com o controle-guitarra na mão – que vão as vaias do público. É também para esse ele/eu que vão os gritos delirantes da platéia quando, acionando o “star power”, calibramos nossa performance no palco. O “star power” – o “poder de estrela” – é um expediente do jogo capaz de duplicar a pontuação e que pode ser “acionado” quando o jogador consegue acertar um dado número de notas seguidas. Para acionar o “star power”, é preciso inclinar a guitarra, num trejeito de pop star, e o jogo premia objetivamente um dado performático que parece vir naturalmente. Em resposta, nosso avatar rodopia no palco, sendo ovacionado com palmas e gritos pelo público. Ao final da performance, a pontuação nos é comunicada por uma pequena resenha de jornal, com direito a estrelinhas e percentual de acerto e uma manchete que diz que sua banda empolgou os presentes em show tal e tal. Vale de tudo para fazer de conta que a guitarra em suas mãos é de verdade e que você não está rebolando sozinho na sala de casa.

A intenção do jogo, que fique bem claro, não é ensinar música ou emular uma guitarra real. Ele é o simulador de um sonho, muito mais do que de um instrumento, pura e simplesmente. No universo dos games, ser uma simulação traz menos a carga pejorativa de um reducionismo, devendo ser encarado mais como um modo discursivo em si, com suas próprias potências e limitações – como qualquer outro modo de discurso, aliás. E, como simulação, a lógica do jogo vai de baixo para cima: a partir de poucos procedimentos, enraiza-se no corpo, emerge dele para criar uma prática cultural que tem dado pistas sérias de estar se tornando uma nova forma de experienciar a música. Experiência, aliás, é a palavra-chave quando se pensa o video game como formato.

A genealogia em que se insere Guitar Hero nos remete a um precursor, o GuitarFreaks, um jogo de arcade da década de 90 e, mais recentemente, o game Frets on Fire, jogo de código aberto para PC, que segue princípios idênticos, mas não é proprietário. Muito criativo, é jogado a partir de um teclado normal, só que usado de maneira análoga a uma guitarra. Ou seja: segurado junto ao corpo, com as teclas sendo apertadas como se fossem as cordas. Não tem o controle-guitarra nem os recursos visuais de Guitar Hero, mas, em Frets on Fire, é possível editar músicas, importá-las do set list de Guitar Hero e, assim, libertar-se do repertório pré-determinado. Tanto num, como noutro, o jogar casual é possível e encorajado, tal qual uma pelada de fim de semana. Para os compulsivos, há o modo “carreira”, no qual o grau de dificuldade vai aumentando dentro dos níveis e de um nível para o outro. No modo “carreira” você, seu avatar e sua banda começam tocando num bar apertadinho e vão parar num grande festival ao pôr-do-sol.

Games como Guitar Hero e seus congêneres criaram uma ecologia na qual jogar pode ser uma brincadeira em grupo. Há as inúmeras competições, formais e informais, nas quais os desafios incluem “tocar” sem olhar a “partitura”, tocar com e contra um oponente – afinal, o jogo conta pontos --, e até mesmo alcançar níveis de virtuose dignos de serem divulgados - no YouTube, claro, onde mais (vejam alguns exemplos aqui ou aqui). Guitar Hero é um dos jogos a compor o inédito broadcast de competição de video games anunciado pela rede americana CBS. Resta saber quais metamorfoses se anunciarão para sua prática, entre jogo e performance, a partir da divulgação na TV. Estaria surgindo uma forma híbrida entre esporte organizado e video clipe?

Um passo além da performance, Guitar Hero já dá sinais de se internalizar como modalidade cultural. Nos EUA, um jogador modificou elementos do jogo e criou uma banda na qual dois controles-guitarra são usados como sintetizadores, realmente produzindo sons – no caso, de guitarra e baixo, ao lado de uma bateria “real” e de um vocalista devidamente humano. A banda já se apresenta na noite californiana e alguns vídeos de suas performances podem ser vistos no YouTube. Se são eles bons, musicalmente, não importa: o interessante é observar como apontam a mudança de um objeto, algo que passa a ser, ao mesmo tempo, causa e sintoma de toda um nicho cultural. Um caminho natural para o game – versão proprietário ou não – é que ele acabe por implementar tanto um sintetizador quanto uma plataforma em que se possa criar e (de)codificar outras músicas, além do repertório pré-determinado. É fácil imaginar um cenário onde possamos “instalar” nossa música favorita num Guitar Hero ou semelhante, de modo a “rearranja-la” e “toca-la”. Junte-se a isso a possibilidade de criar também imagens para unir ao jogo e um novo mundo de consumo pop pode estar emergindo.  É o mais próximo que alguns de nós vamos conseguir chegar de Jimi Hendrix...

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta