O Pecado de Hadewijch
(Hadewijch),
de Bruno Dumont (França, 2009)
por Juliano Gomes
As
formas do invisível
A primeira seqüência de o Pecado de Hadewijch
nos mostra a protagonista Celine sendo expulsa de um convento
por não acatar as regras deste, por conta da sua irrestrita adoração
a Deus. A fé de Celine não suporta doutrinas ou qualquer tipo
de intermediários entre ela e o objeto de sua crença, daí a sua
não adaptação à fé cristã. O cristianismo funda sua fé na imagem
e exerce seu poder através da imagem de Jesus – é preciso adorar
e venerar a imagem, esta presença visível do invisível. O problema
aqui é justamente a não aceitação deste pacto e as conseqüências
mais radicais disto. O filme estabelece um paralelo entre duas
formas religiosas que protagonizaram e protagonizam o maior acontecimento
político e imagético no nosso século: o cristianismo e o islamismo.
Celine vai de um ao outro, na sua busca de uma forma de fé que
possa ser mais direta, que lhe permita agir. A fé pela imagem,
cristã, a qual ela não se adapta, se funda numa certa ausência,
pois a imagem é isso: a presença de uma ausência. A ausência de
imagem no exercício da fé no islã representa uma abertura para
Celine da possibilidade da realização de um contato verdadeiro
com Deus.
Há
na protagonista um desejo ardente que precisa ser sublimado de
alguma maneira, essa sublimação não cabendo no regime católico,
fundado na renúncia do desejo. O desespero desta menina é não
poder dar vazão a esta atração, é que sua paixão se acumule nela
mesma e não possa retornar ao mundo de alguma forma. Ela recebe
a graça de Deus, mas ela precisa dar algo em troca, necessita
responder. A personagem interpretada por Julie Sokolowski é talvez
a primeira de Bruno Dumont que tem consciência plena de seus atos.
Isso torna esse, talvez, O Pecado de Hadewijch o mais abertamente
político de seus filmes – não só pela alegoria clara do estado
das coisas atual na Europa, mas pela associação entre religião,
imagem e responsabilidade individual. Celine deixa a imagem, a
forma da fé católica, indireta, para mergulhar no mundo; para
nele, através do contato direto, do toque, de seus atos materiais,
poder experimentar Deus.
A jornada de Celine é a de perceber, principalmente
através de Yassine, o personagem “terreno” na armação de Dumont,
seu vínculo com o mundo, de observar que suas ações geram reações.
A questão é aprender a olhar para as coisas e perceber a si mesma
na sua relação intrínseca com elas. O maior exemplo disso talvez
seja na bela cena na cozinha com Yassine, onde ela parece sentir
a força quase incontrolável da atração entre dois corpos. Há neste
breve momento o que ela tanto buscava, a possibilidade de reciprocidade,
de resposta, de algo que acontece entre dois, e que tem conseqüências
no mundo visível. Existe ali algo de invisível que é sentido e
partilhado, assim como é a fé, que a une ao irmão de Yassine.
O
laço entre os três personagens principais do filme é justamente
esta possibilidade de partilha através de uma relação comum com
o invisível (seja a fé, o desejo, a música), mas que passa pela
experiência, imanente. O cinema, a imagem, é uma das possibilidades
deste elo, que expressa esta tensão permanente entre o visível
e o invisível. O que Celine faz é buscar estes invisíveis, estes
personagens que vivem na margem, que muitas vezes não têm nome
(como o homem que a “salva” de seu próprio suicídio), e perceber
sua ligação com eles. Celine sai do convento em busca de união,
em busca de estar perto do que gosta, de um amor que se consume.
Ela não podia mais ficar isolada, ela precisava do mundo. A imagem
não pode substituir o mundo. Assim, seu ato extremado, o atentado,
é a consumação de algo planejado e consciente. O que frequentemente
se chama terrorismo nas manchetes de jornal é aqui um ato profundamente
racional: ela decide levar a cabo sua paixão, sob o risco de sucumbir
e morrer. Terrorismo e suicídio, dois dos maiores tabus do Ocidente,
são atos de tomada de responsabilidade aqui.
Mesmo que aqui se perceba a intenção de Bruno
Dumont de tentar reproduzir no filme uma sociedade que se espelha
na relação de forças que existe no mundo fora do filme (povo europeu,
imigrantes, políticos, terroristas...), a imagem que ele cria
é cheia de buracos. A alegoria é um instrumento e não um fim em
si mesmo que desejaria somente a ajuste perfeito entre a imagem
e a idéia. Se o custo desta escolha é o achatamento da densidade
de alguns personagens (Yassine é o exemplo maior disso, na sua
representação do imigrante desajustado por culpa do sistema),
Dumont assume esta responsabilidade conscientemente. A singularidade
não parece ser uma questão, mas sim uma espécie de fundo comum
que liga os personagens igualmente, mas que os mantém diferentes.
É a busca desse lugar que interessa ao filme, e para isso se oblitera
essa dimensão mais “individual” dos personagens. Celine é justamente
a personagem que quer abandonar o “individual”, ela quer dividir,
tocar, morrer, quer qualquer algum tipo de comunhão, ela não se
basta em si mesma. E mesmo no momento onde ela o cometa o que
talvez seja o mais individual dos atos, há alguém junto, que faz
parte daquilo. O personagem que a socorre é justamente aquele
que não tem nome, que trabalha na construção civil, que esteve
na cadeia. Ele é, acima de tudo, aquele que não se vê, aquele
que não faz parte: um qualquer.
O convento e a casa luxuosa onde mora a protagonista
são os lugares onde há imagens demais, e, portanto, já não se
consegue ver nada. As freiras não conseguem ver a fé de Celine,
e seu pai (que não por acaso é ministro) não consegue enxergar
Yassine além de sua classe ou sua aparência. O risco da imagem
é justamente saciar uma vontade de mundo, apagando os vínculos
entre nós e qualquer um. É justamente esse um dos maiores problemas
de boa parte das religiões, dos regimes políticos (especialmente
os de representação) e do cinema que quer nos dar uma imagem do
mundo que nos satisfaça totalmente, que nos mantenha na imobilidade,
saciados. É neste ponto que O Pecado de Hadewijch parece
querer incidir, sobre a possibilidade, de ver menos, de renunciar
à imagem, para poder ver mais, para poder enxergar o que o excesso
de imagens pode vir a deixar menos claro: a existência de uma
dimensão comum, onde todos estão relacionados com todos, e que
nos torna responsáveis mutuamente. Tornar estes laços visíveis
parece ser a crença de Dumont.
Novembro de 2010
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