Simplesmente
Feliz (Happy-Go-Lucky), de Mike Leigh (Inglaterra, 2008) por
Eduardo Valente Felicidade,
por que?
Os créditos iniciais nos apresentam a
protagonista de Simplesmente Feliz pedalando sua bicicleta pelas ruas de
Londres com um sorriso no rosto, ao som de uma música alegre. Como se não bastasse
o efusivo título do filme, logo descobriremos que ela se chama Poppy e veremos,
na primeira cena de interação entre ela e outra pessoa, sua tentativa de animar
o taciturno vendedor de uma livraria, ao mesmo tempo em que rejeita ao ver na
prateleiras um livro chamado “Road to Reality” (O Caminho para a Realidade), preferindo
folhear um livro na sessão infantil, chamado “Kingdom of the Sun” (O Reino do
Sol). Tendo em vista a descrição acima, poderia ser possível (até provável, eu
diria) pensar que Simplesmente Feliz é uma comédia leve, alegre, solar
– no entanto, os que conheçam melhor a carreira de Mike Leigh já podem imaginar
que as coisas não são simples assim (aliás, talvez nunca tenham sido tão complicadas
no cinema dele). Ou
melhor, simples até são, no sentido de que o filme de Leigh, como podemos notar
por esta já quase absurda superposição de hipérboles listadas acima, é extremamente
didático no que pretende explorar: a felicidade como possibilidade de estado humano.
De fato, a trajetória de Poppy, em seus vários encontros com diferentes personagens
ao longo do filme, parece um espelho destorcido da de Johnny, personagem de David
Thewlis num dos mais bem sucedidos filmes de Leigh, Naked (1994). Se naquele
filme, Leigh mergulhava sem qualquer pudor no afundamento completo de um ser humano
num estado radical de miséria e sofrimento, aqui ele parece fazer exatamente o
contrário, mas com o mesmo nível de radicalismo, e o filme todo chafurda na alegria
quase insustentável de Poppy. Opostos que sejam os sentimentos, logo percebemos
que as intenções de Leigh não são: frente a estes exemplos extremos da vivência
humana frente ao mundo (e, principalmente, aos outros), deseja-se cutucar o espectador
nas suas certezas sobre suas próprias percepções do mundo e das relações. Desde
o começo do filme, já instala-se da parte do espectador um incômodo: seria esta
alegria desmesurada de Poppy algo desejável? Será que é algo com que estamos preparados
para conviver? Porque o fato é que a felicidade da personagem se mostrará muitas
vezes asfixiante, tanto para alguns dos personagens em cena, como principalmente
para o espectador. Esta felicidade não se aproximaria de um certo estado de apoplexia?
Ou a simples dúvida que temos sobre isso não seria ela mesma um reflexo do fato
de que simplesmente não conseguimos lidar com a idéia de uma tal alegria? Leigh
se aproveita ainda desta sensação de estranheza frente à visão de mundo de sua
personagem para nos colocar num estado de constante tensão no desenrolar do filme,
pois tamanha felicidade nos parece estar sendo construída sempre como estopim
de uma descida ao inferno típica do que entendemos como “realidade” (ficcional,
principalmente). Será que esta decida é mesmo inevitável? A dúvida nos assola
durante a projeção toda, dando um inesperado componente de suspense ao filme. Os
trabalhos de Leigh e de sua protagonista Sally Hawkins também levarão as dúvidas
do espectador num outro caminho: afinal, seria essa felicidade transbordante da
personagem algo real para ela ou apenas uma fachada que encontrou para sobreviver
no mundo? De novo, os olhos e a expressão corporal de Hawkins não nos permitirão
qualquer tipo de certeza ao longo do filme, nos dando seguidas indicações de que
ambas as hipóteses são críveis. Leigh estrutura seu filme a partir de uma série
de “confrontos” de Poppy com situações que colocam este seu estado de espírito,
digamos, efusivo em conflito com os fatos à sua volta – indo do primeiríssimo
e mais leve (o furto da bicicleta que a vemos pedalando nos créditos) ao mais
pesado e explorado pelo filme: a relação da personagem com o instrutor com quem
tem aulas de direção, e que é o oposto perfeito do humor de Poppy. Interpretado
por um Eddie Marsan sempre à beira de um ataque de nervos, o professor Scott se
encaixa perfeitamente na lógica de composição de personagens com que Leigh gosta
de trabalhar, um tanto fora do registro naturalista-televisivo. A relação de Scott
e Poppy obviamente não é a de personagens em estado de “fluxo”, como tem sido
bastante visto no cinema contemporâneo: eles não estão ali “vivendo momentos”
para a câmera captar e sim recitando diálogos dentro de um perfil exagerado de
personagem com os fins estabelecidos por Leigh. Claro que cabe ao espectador comprar
ou não este jogo, este entendimento do mundo ficcional quase como um tabuleiro
teórico onde as peças desempenham papéis determinados para o que o filme quer
colocar em discussão. Algumas cenas e situações possuem mais fortemente este caráter
quase discursivo (pensamos na do mendigo), outras menos (as aulas de flamenco,
por exemplo), mas não o que não se altera é esse registro um tom acima. Se
deixamos de lado possíveis interdições ao modelo de composição ou de estrutura
narrativa (onde, de novo, didático me parece um termo adequado, sem qualquer conotação
negativa), é quase impossível não se impressionar com a forma apresentada aqui
por Leigh, num dos momentos mais exuberantes de sua carreira (de novo, pensamos
em Naked, Segredos e Mentiras e mais um ou dois filmes). Os trabalhos
de montagem e fotografia de Simplesmente Feliz são certamente das mais
fortes e bem resolvidos de toda a carreira do diretor, servindo perfeitamente
aos seus objetivos e resultando em algumas cenas quase perfeitas em ritmo e mudanças
do cômico ao dramático e vice-versa (como o jantar em família ou a citada aula
de flamenco). Leigh apresenta o seu problema de forma cristalina e cativante:
o que é a felicidade? E, mais importante e subreptíceo: será que ela vale a pena?
O filme não apresenta respostas fáceis pendendo para qualquer dos lados, apenas
deixa o espectador sentir organicamente com a história dessas personagens que
a dúvida o pertence.
Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|