in loco - cobertura do Festival do Rio

Havana - A Nova Arte de Construir Ruínas
(Habana - Arte Nueva de Hacer Ruinas),
de Florian Borchmeyer (Alemanha/Cuba, 2006)
por Cléber Eduardo

Uma tese em ruínas

Há uma tese em Havana – A Nova Arte de Construir Ruínas, do alemão Florian Borchmeyer, mas não se sabe se ela é o motivo do documentário ou se surgiu do contato dos realizadores com seu material humano e espacial. A tese está na vinculação entre o estado decrépito de edifícios da capital cubana, a ruína pessoal dos entrevistados e a decadência do regime socialista. Mesmo com uma seleção de imagens e depoimentos orquestrada por critérios pouco rígidos, é clara a estratégia de se apoiar nas conclusões de um dos "personagens", segundo o qual as ruínas arquitetônicas são uma tática de Fidel Castro para estampar sinais públicos de uma guerra com os EUA e, ao mesmo tempo, criar um sentimento coletivo de imobilismo diante das evidências de um regime moribundo. Seguindo esse raciocínio, se não se faz muita coisa para ir contra os estragos do tempo nos prédios, criando uma cultura da naturalização do abandono, esse cultivo da inoperância seria extendido a todo o país, diante do qual a população também estaria amortecida e à espera de uma mudança gerada pelo tempo (a morte do Comandante e o fim do socialismo). Essa é, simplificando, a tese.

O começo já nos induz a perceber o caminho traçado por Borchmeyer. A câmera está dentro de um elevador com portas de grades, uma evidência em si mesmo de um período ultrapassado. Conforme o elevador sobe, vemos por frestas a cidade ao fundo, imagem essa interrompida pelo escuro entre os andares. Nosso olho parece estar encarcerado e incapaz de enxergar a contento, o que, quando ouvimos imediatamente depois o depoimento de um criador de pombas desejoso de circular pelo mundo, torna-se quase um diagnóstico político da falta de liberdade em Cuba. O país é tomado como um presídio (preso ao passado).

Tal constatação, por conta de uma estrutura bastante frouxa de organização do material, é obtida pela repetição. E por essa razão o documentário entra, após uns 40 ou 50 minutos, em um ciclo de redundâncias, com vários dos entrevistados falando variações da mesma coisa. E essa mesma coisa tem muito de Hegel e pouco de Marx, no sentido de que, em vez de manifestar desejo e necessidade de transformação pelas mãos dos homens, apenas aceita a lógica do tempo como motor de mudanças. "Tudo muda, nada é para sempre", diz uma senhora. Ou seja: somente o tempo e o natural percurso da História, com suas corrosões inevitáveis, podem alterar os rumos de Cuba – e, conseqüentemente, dos prédios e de seus moradores. Valoriza-se na seleção dos depoimentos uma postura de espera e de aceitação, não sem consciência da proximidade de um fim de um ciclo. É explícito o tom de luto a conta gotas expresso pelos entrevistados. Vemos quase uma oração fúnebre pelo fim de um regime e de um momento histórico. Falta-lhe abrir o plano e, além das ruínas, mostrar o contraponto: as cores fortes da cidade, a musicalidade do cubano, a alegria com a qual resiste. O contraponto esboçado aqui é de natureza temporal: mostra-se imagens de arquivo do início da Revolução, nos anos 60, e de momentos anteriores a subida ao poder de Castro em 1959. 

No entanto, se existe uma tese, também há a antítese (como em Hegel). E essa está concentrada, sobretudo, na figura de uma mulher que, ao falar de seu cantinho em ruínas, trata-o como espaço de liberdade, onde se protege dos infortúnios. E isso nos remete ao final de Miami Vice, quando, para escapar da lei, Gong Li parte para Havana, onde estará segura, pois protegida pelo fato de a cidade estar em uma lógica e um período paralelos. Havana é um paradoxo e, nesse sentido, Borchmeyer a respeita. É importante salientar que os moradores das ruínas, em linhas gerais, não se colocam como vítimas do regime, mas como responsáveis por suas condições. Em pelo menos dois casos, afirmam gostar de onde moram, em parte porque se alimentam dos fantasmas e da memória de seus espaços, incorporando o passado ao presente, mas também porque, independentemente da péssima conservação e das circunstâncias de miséria quase completa, eles tratam suas ruínas domésticas como um lar. Antes uma casa prestes a ruir do que uma ausência de casa para se morar. Essa relação de defesa de seu canto, talvez, tenha a ver com a relação com o país. Antes uma Cuba arruinada a uma falta de Cuba. Resignar-se com a condição de ruína, portanto, tem algo de atitude política de resistência. O mérito de Borchmeyer é, sem abrir mão de sua tese, respeitar a antitese.

Entre ganhos e perdas, Havana - A Arte de Construir Ruínas, a começar por seu raio x de um organismo condenado, entrando no interior das edificações em vias de desabar, tem a importância de existir. Com todos os seus senões.


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