Antes
Só do que Mal Casado (The Heartbreak Kid), de Peter e Bobby Farrelly
(EUA, 2007) por
Francis Vogner dos Reis Curto-circuito
É
possível ver beleza e graça nas contusões, queimaduras, secreções, aberrações,
piadas que envolvam albinos, deficientes físicos e mentais e diferenças culturais
e raciais traumáticas? Os irmãos Farrelly não acreditam que essas coisas sejam
em si mesmas engraçadas, mas uma situação armada a partir do inusitado que o choque
disfuncional entre o que (ou quem) é considerado normal e o que (ou quem) não
é, acaba por colocar sob a mesma condição o que (ou quem) em princípio é diferente
ou até visto como desigual. Essa relativização, portanto, é assumida em um efetivo
engajamento que alcançou seu ponto alto em Ligado em Você, e um desdobramento
sóbrio e até surpreendente (para quem acreditava que o projeto de cinema dos caras
se baseava especificamente no grotesco) em Amor em Jogo. Eis
que aparece este Antes Só do que Mal Casado, em que Ben Stiller é um solteiro
nem tão convicto, que chegando aos quarenta anos se vê sozinho e na necessidade
de arrumar uma garota. Ele é uma piada para quem o conhece, vítima tanto da chacota
do pai e dos amigos casados, quanto das crianças com quem têm contato e que acreditam
que ele seja gay. Conhece então, ao acaso, uma garota linda e espirituosa e em
pouco tempo se casa com ela. Já na viagem de lua de mel ela se revela uma excentricidade
que ele desconhecia: solta leite pelo nariz, trepa de cabeça pra baixo, peida
alto depois de transar, canta incansavelmente sucessos das Spice Girls, Miami
Sound Machine e de Barry Manilow; é teimosa, mentirosa e histérica. No hotel onde
estão hospedados, o personagem de Stiller conhece uma outra garota e a confusão
está feita. A breve descrição não contém nada de surpreendente, mas é o tom (ou
os tons) que fará a diferença. O
filme é um tanto quanto desconcertante para quem havia se acostumado com a pegada
mais serena que haviam adotado nos últimos trabalhos. Aqui temos a volta de um
humor generosamente grosseiro, mais próximo a Quem Vai Ficar com Mary?
(não só pela presença de Ben Stiller) e mais discreto do que o (realmente) ultrajante
Eu, Eu Mesmo e Irene, a obra-prima da dupla. O interessante é que a nova
comédia dos Farrelly não repete exatamente a fórmula dos sucessos mais antigos,
só que também não dá continuidade à linha agridoce dos filmes mais recentes. O
que acontece é um curto-circuito, para o bem e para o mal: existe uma tentativa
de comédia com fio condutor dramático mais bem definido (como Amor em Jogo),
mas, a partir dessa escolha, a caracterização de situações e personagens mais
extravagantes parece um peso extra e às vezes esquemático, que parece existir
mais como uma marca de autoria, do que algo que realmente sirva ao projeto. Não
que isso conspire pra frustrar o novo trabalho dos diretores. Na verdade, o incômodo
aqui é de mão dupla: o que é bom não faz rodeios, é direto e agressivo. Não se
vê sempre no cinema do mainstream, tamanha clareza, crueza e crueldade
– equilibradas com uma desconcertante naturalidade – estampadas em todas as suas
escolhas, desde as dramáticas até a brutalidade formal mesmo. Closes, como o que
é dado na tarja que censura o sexo da garota quando ela urina em cima de Stiller,
cortes violentos de uma cena a outra geralmente quando os personagens são atingidos
por alguma coisa, na caracterização ordinária dos personagens secundários e a
instabilidade moral de seu herói. Tudo é disfuncional, desde
o próprio corpo até a personalidade do protagonista: o Stiller indeciso no primeiro
ao último plano de Antes Só do que Mal Casado, não é diferente dos instáveis
heróis do universo farrellyano como a Mary indecisa entre tantos homens,
Jim Carey com dupla personalidade e os gêmeos siameses com interesses entre si
bastante diferentes e contraditórios. O cinema dos Farrelly é isso: uma arte de
vocação incrível pra fazer um elogio aos desajustados sociais, por isso, sempre
o motor do humor será a contradição, seus personagens serão corpos inadequáveis
ao espaço (ou ao mundo) que ocupam. Os filmes dos Farrelly em geral apresentam
um descompasso entre o desejo dos personagens representado pela deficiência que
possuem (seja física, psicológica, emocional) e ao protocolo das exigências sociais,
eles lutarão não para se enquadrar, mas para se readaptar a realidade. Em
Antes Só do que Mal Casado, trata-se do determinismo do casamento e da
família. O contraponto ao protagonista, por exemplo, é o conciliado e boçal amigo
pai de família, perfeitamente adaptado e conformado, com seu ridículo “topete
na careca”, cultivado a mando da esposa. À exceção de David Cronenberg, não há
cineasta em atividade que coloque os corpos de seus personagens em um processo
maior de readaptação à realidade do que os Farrelly – que, para isso, vão expô-los
às mais variadas formas de brutalidade. Se em Cronenberg os corpos são expostos
aos limites da violência, no cinema dos irmãos Farrelly os corpos serão marcados
pela violência das circunstâncias. Em um, o horror; nos outros, o humor. Em
uma época em que um embuste como Pequena Miss Sunshine é visto como uma
mordaz e desencantada paródia das exigências sociais americanas e um retrato simpático
dos freaks – ao fazer uma espécie de circo de horrores em que expõe a dor
e a decadência de coitados sociais -, os Farrellys afirmam seus “esquisitos” sem
qualquer constrangimento sabendo que encenar um beijo e uma pancada é filmar um
universo e só se faz isso com imersão total, não com distanciamento cínico. Por
isso, onde posicionar a câmera e como filmar um personagem é uma questão moral
pra eles. Apesar dos desníveis, Antes Só do que Mal Casado é feito com
convicção profunda e consciente de seu objetivo. Algo raro. Novembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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