Hellboy 2 – O Exército Dourado (Hellboy II: The Golden Army), de Guillermo del Toro (EUA/Alemanha, 2008)
por Paulo Santos Lima

A libertação da escrava fábula

Abolicionista, Guillermo del Toro vem fazendo uma pequena revolução no cinema de fantasia ao libertar a fábula de uma obrigatoriedade escrava: a de servir como ilustração, sombra cinética, ressonância do mundo real (o nosso mundo, no caso). Esse processo, que surgiu mais pronunciadamente justamente em Hellboy (2004), consegue, em Hellboy 2 – O Exército Dourado, uma alforria total, (im)pondo os elementos fabulares ao lado dos diegeticamente reais – ou seja, colocando num mesmo campo o mundo real e o fantástico, os humanos e os inumanos, o crível e o incrível, o fantástico e o naturalista, e criando uma contaminação mútua entre todos.

Essa convivência entre personagens de origens biológicas ou simbólicas num mesmo enquadramento e espaço diegético seria, ainda assim, usual para um filme comercial (do terror ao sci-fi, de Alien e Star Wars a E.T. e X-Men ou Homem-Aranha, não faltam exemplos) se não houvesse um tremendo jogo que encorpa as singularidades dos universos e seus respectivos personagens para então, na mise-en-scène, colocá-los em contato e relação. Mantêm-se as diferenças para, no fluxo das imagens e dos enquadramentos, igualar a todos. Pode-se dizer que no próprio personagem de Hellboy, doce, herói, altruísta, romântico, tão boçal quanto nós, mas que é literalmente um demônio monstruoso, está a síntese do discurso (político-estético) de Guillermo del Toro.

No prólogo já estão dados os procedimentos que Del Toro utilizará. Temos um Hellboy infante, ainda nos anos 50, ouvindo de seu pai adotivo um conto de fadas sobre dois reinos que lutam, até o rei dos inumanos criar um exército de robôs dourados e indestrutíveis que quase arrasa com os humanos, para, no final, entrarem numa trégua que desfavorece os fabulares. Entre o espaço relatado e o espaço do narrador, Del Toro usa uma câmera que liga coisa a outra, que passeia e adentra a fogueira do quarto para sair no tal campo de batalha da fábula contada. Inclusive, ao final do prólogo (no qual o pai profetiza que seu pequeno Hellboy saberá o que de fato acontecerá com os personagens do conto), as engrenagens que construíram os robôs montarão as letras que dão nome a este filme. Ou, para fecharmos, a seqüência que mostra o príncipe-monstro Nuada exercitando sua espada até o momento em que passa, no fundo do plano, um familiar metrô.

Hellboy 2 faz, portanto, um processo de “realização”. Ou seja, torna real, crível, natural, o sobrenatural. Agrega o naturalismo a elementos cujos índices são fantásticos, fora do normal. E faz isso de um modo cênico e de construção dramatúrgica. Coloca lado a lado corpos cujo estar no mundo é distinto, corpos cujas linhas não seguem as mesmas geometrias e vetores. É aqui que O Labirinto do Fauno (2006) se faz crucial. Delírio apoteótico no qual a fábula e a realidade histórica (franquismo) equiparam-se diabolicamente na presença que fazem num mundo que é, decerto, a Terra, o mesmo nosso, é o filme mais autoral de Del Toro e que lhe permitiu liberdades que supostamente são barradas quando sob contrato em Hollywood. Assim, ele pôde prescrever o DNA de seus seres, compor sua pátina visual singular, de caligrafia bem distinta e que ultrapassa as convenções pictórico-literárias ligadas ao universo da fábula e dos seres fantásticos, trazendo à tela seres neogóticos, corpos moldados sob uma fusão rococó-ceuta além-padrão industrial (basta ver o fauno na foto ao lado para percebermos o altíssimo calibre estético autorado por Del Toro para essa sua ultra-anti-fábula lisérgica).

Se no primeiro Hellboy Del Toro não feriu o molde dos filmes de ação fantasiosos, nesse segundo a fantasia aproveita o lombo do cinema de ação para promover o seu discurso. Em meio ao caudaloso fluxo de acontecimentos, saberemos que Hellboy, na sua tentativa de sair da invisibilidade que o FBI exige aos seus “agentes especiais” , é apedrejado injustamente pelos humanos, que o compreendem como uma aberração, e isso logo após ele salvar um bebê de um monstro-árvore responsável pelo momento “poético” do longa, quando o asfalto e os destroços são cobertos por uma frondosa vegetação. O drama de Hellboy, portanto, não é diferente do “vilão” Nuada (foto), que na verdade quer sair também de uma clandestinidade que acomete seu povo há anos, que os coloca nos subterrâneos. Hellboy e Nuada brigam, mas são quase irmãos de sangue; e ambos portadores do direito pela vida e pela justiça. Não é à toa, também, que um pequeno ogro comedor de gatos disfarça-se de velhinha e vive nos becos novaiorquinos. Ou que o portal para o mundo da fantasia fique sob a ponte do Brooklyn.

Del Toro está, sim, ao lado dos marginalizados, e constrói um cinema afim, chocando as convenções, pondo seus faunos, monstros, titãs, demos, gosmas, homens-peixe, elfos etc em interação forçada com os humanos, falando do inferno e fascismo com irreverente graça. De fato, o forte humor presente no filme possui não é à toa. Objeto sempre preterido às análises, visto como algo “menor” (Jerry Lewis, um dos maiores artistas modernos americanos, que o diga), é um meio de subverter a ordem, chegar a sensações ambíguas, apreensões espasmódicas de um discurso que chega à tela pulsante. Somente com muito riso e graça pode-se falar de um demônio cuja missão “genética” e abrir o portal do inferno na Terra, mas, por simpatia e convicção próprias, prefere o atroz serviço aos ingratos humanos, viver subalternamente e ainda gamar numa bonitinha mulher que solta fogo pelas ventas e é declaradamente uma chata.

É com o irreverente humor, portanto, que Guillermo del Toro traz à vida esses seres fantásticos, transgredindo o conservadorismo “branco” da criação industrial ao colocar inumanos nas mais banais ações humanas. Só o humor pode compor esse painel ã la Diego Rivera que o conterrâneo Del Toro pinta, com pincel passando em tinta contínua de espaço a outro, em alguns pequenos planos-sequência que buscam momentos-sínteses como o de Hellboy e seu colega Abe Sapiens apaixonados, e enchendo a lata com litros de cerveja e ouvindo uma tola música de embriaguez.

Setembro de 2008

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