Além da Vida (Hereafter),
de Clint Eastwood (EUA, 2010)
por Rodrigo de Oliveira
O
estranho com nome (chamam-no "céu")
A seqüência de Invictus e este novo Além
da Vida, com as semelhanças de sua recepção
(desempenho mediano nas bilheterias e mais ataques que defesas
da crítica), parece apontar para o até então
impensável na relação com Clint Eastwood:
ele teria se tornado matéria para especialistas - justo
ele, o último grande herói das massas, marca ainda
visível do século que as inventou (junto do próprio
cinema). E, assim, seria apenas através de um duplo movimento
de retrospecto individual e perspectiva história que os
filmes poderiam ser realmente apreciados, porque só dessa
maneira eles fariam algum sentido ("sozinhos eles não
se sustentam"). Aos defensores, a acusação
de se enrolarem na bandeira da autoria, essa mesma bandeira que
às vezes tapa os olhos e nos impede de ver a verdade, o
ídolo caído. Numa temporada
de exceções e acidentes, em que assistimos os primeiros
"bons filmes" de cineastas antes massacrados e os primeiros
"maus filmes" dos até então gênios,
o que afeta o julgamento de Eastwood é sua insistência
em ser regra e consciência.
Porque alimentar a autoria nele é nos forçar a lidar
com um longo passado de imagens que surge como alucinação
- é esta a maneira que o cinema permanece nas nossas cabeças,
como uma série de delírios de um já-acontecido
que se decora apenas em parte, diferente da música e da
poesia, e que eventualmente se confunde de maneira irreparável
num panteão de imagens-fantasma que torna o trabalho do
cine-amante uma investigação quase mediúnica.
E porque parte do prazer deste amor vem da possibilidade, deliciosa
e inútil, de se prever o futuro daquele universo, daquele
personagem que elegemos como objeto de devoção,
matéria para videntes. Atribuir a Além da Vida
um passo de Eastwood para fora de sua zona de conforto (e por
conta do tema, ainda por cima) só é possível
se considerarmos que houve, em algum momento de sua longa carreira,
o estabelecimento de uma ordem calma e apaziguada das coisas -
não, nunca houve. A regra sempre foi o confronto, a instabilidade
e o desconforto. A consciência sempre apontou para o peso,
a conseqüência, a História. Não existe
"ame ou deixe" com Eastwood, porque aqueles que amam
nunca estão em paz com aquilo que seus filmes nos provocam,
e aqueles que deixam nem sequer calculam a quantidade de problemas
de que escaparam.
Além
da Vida seria, então, o filme sobre a reconciliação
de um ícone do cinema marcado pela idéia da morte
com a garantia de continuidade da vida - não fossem todos
os sinais apontados para mais uma irresolução e
mais uma impossibilidade, desta vez tomados em larga escala. A
idéia de vida após a morte foi sempre uma constante
nos filmes de Clint Eastwood, mas ela nunca esteve associada ao
além, porque dizia respeito àqueles que permaneciam
vivos e eram obrigados a lidar com um recomeço em bases
diferentes uma vez que a morte (de um parceiro, um parente, um
amor ou até mesmo um inimigo) transformasse aquilo que
entendiam até ali como vida. É assim em Os Imperdoáveis
e em Menina de Ouro, em Josey Wales - O Fora da Lei
e em A Conquista da Honra: a morte surge de maneira tão
devastadora que o que quer que exista depois dela só pode
ser considerado uma nova existência, uma nova personalidade,
um novo universo, pois aquilo que ficou para trás é
insuportável demais e pede, demanda, o abandono imediato.
Em
Além da Vida, é novamente nos vivos que
Eastwood se segura, mas num momento em que flertam com este lado
de lá sem, no entanto, precisarem abandonar o lado de cá
(uma experiência de quase-morte; um médium que se
comunica com o além; o gêmeo que fica enquanto o
outro, que é sua metade, parte). Em todos os casos, esse
flerte com a morte é produtor de uma memória, e
a memória é sempre destrutiva, sempre problemática.
Cineasta do bordão muito mais que do diálogo, Eastwood
faz Matt Damon repetir várias vezes que seu dom mediúnico
não é uma benção, mas uma maldição.
Vemos em George o mesmo solitário idiossincrático
que tantas vezes o próprio Clint encarnou no cinema, mas
seu desespero é muito mais literal. Vivendo por procuração,
ao ouvir repetidamente o áudio-livro de um romance de formação
de Charles Dickens, George encontra em David Copperfield a narração
de uma trajetória que ele mesmo foi impossibilitado de
experimentar. Para que pudesse existir do jeito que é,
George dependia da morte - aquilo que entende como "ser"
só se aplica quando todo o resto já deixou de sê-lo
(a alternativa a isso: matar a si mesmo, pelo menos em termos
de consciência, tomando os remédios para esquizofrenia
na adolescência).
A maldição está menos na rotina de receber
clientes e ser o receptáculo de suas tristezas que na impossibilidade
de fazer dessa habilidade um estímulo, uma pulsação,
uma ferramenta para a iluminação ou o conhecimento
profundo do humano: como os cowboys, os policiais ou os treinadores
de boxe, esse contato tão direto com o que se imagina ser
a "grandeza" da experiência humana não
faz dele mais que um operário, trabalhador braçal
numa linha de montagem terrena que desconhece a origem e o destino
de seu esforço. O que, estranhamente, não é
mais do que a grande aspiração de Eastwood: ter
a chance de trabalhar com as mãos, de trazer o que há
de bruto para perto de si e moldá-lo, até que a
manipulação fique tão perfeita e bem talhada
que, no fim, mal se perceba que alguém trabalhou sobre
aquilo.
A
dimensão laboral de Além da Vida é
talvez o que mais anuncie a interdição do caminho
sobrenatural que se imaginaria diante de um tema tão dado
a esoterismos: o filme acredita demais na importância do
toque, no esforço físico para a obtenção
de um resultado, no movimento objetivo
e direcionado, para se deixar prostrar diante do desconhecido.
Poucas vezes se viu um olhar tão dedicado e interessado
a uma jornalista, por exemplo. Às vezes é preciso
estar ao lado dela, e fazer ecoar no filme, durante uma longa
reunião sobre o legado de Mitterrand, justamente essa possibilidade
de criação, de troca de sentimentos e de pensamentos
que é o estar-em-trabalho, mesmo que aqueles objetivos
já não lhe digam respeito. Afinal, existem outros,
e por isso acompanhamos a jornada de Marie na construção
de seu livro sobre o "além da vida" como o que
ela é: trabalho, pesquisa, esforço, acesso às
ferramentas - as diversas referências ao Google, por exemplo,
parecem estar ali apenas para dizer que, por mais facilitado que
estejam essas jornadas hoje, elas ainda dependem da ação
para se materializarem em feitos concretos. É através
do toque que George consegue acessar o canal de comunicação
com os mortos, e é justamente porque toda a aproximação
da personagem de Bryce Dallas Howard prescindiu dele - o belo
intervalo romântico da prova de sabores na aula de culinária
- que aquele encontro está fadado a não se consumar.
Em Além da Vida nem é preciso ver para
crer; basta intuir, e por isso George sente o beijo final em Marie,
mas experimenta, antes de tudo, o toque das mãos.
Mas essas são as pequenas histórias
de pequenos personagens que, por tudo o que nos apresenta o filme,
não são exatamente especiais ou poderosos o bastante
para justificarem um mundo de acontecimentos relevantes e transformadores.
Se George não se tornou o líder espiritual que tinha
potencial para ser, tampouco se pode dizer que Marie romperá
triunfalmente a dita "conspiração do silêncio"
em torno da comprovação científica do céu;
ou ainda que haja em Marcus alguma característica tão
marcante que o faça se destacar do tipo de ambiente social
ruidoso e miserável de que é parte. O talento de
Eastwood aponta justamente para o registro do comum, daquilo que
é natural, partilhável e que reconhecemos de imediato,
mas que filmado com tanta atenção passa a ser extraordinário.
É uma humanidade sem obrigação de humanismo,
que não faz questão nenhuma de chamar para si os
louros da descoberta do ouro na alma de ninguém, que nos
diz apenas um "bastava ver, mas como vocês não
conseguem, eu mesmo o mostrarei". Desse jeito, o mais desarticulado
dos homens pode também se tornar o mais encantador, a mais
duvidosa das pesquisas científicas se tornar uma verdadeira
profissão de fé, o menos simpático dos garotos
escapar de um desastre no metrô e isso parecer justo. Que
aproveitem, portanto, o que puderem aproveitar nesta vida, e que
trabalhem, e se dediquem, e corram o mundo atrás de seus
desejos, porque a alternativa a isso é aterradora demais
para sequer ser considerada.
Assim, o céu
de Além da Vida não é assustador
apenas por descrença ou apego materialista de Clint Eastwood.
Ele surge dessa forma justamente porque há nessa comunicação
com o além a radical impossibilidade de se tornar prática,
trabalho, ação segura. Para cada George que o menino
Marcus encontra em seu caminho existe uma dúzia de charlatões,
e por mais sincera que seja a aproximação de Além
da Vida do poder real que o médium tem em ouvir o
lamento dos mortos, este poder é restrito e localizado
demais para dar conta das grandes histórias, das macro-narrativas
que o filme acompanha. As duas grandes tragédias contemporâneas
que o filme nos mostra, o tsunami na Ásia e o atentado
ao metrô de Londres, estão ali justamente para atestar
essa impossibilidade: são muitos os mortos, e um filme
poderia ser feito sobre cada um deles, mas, ainda assim, seria
impossível, dentro das ferramentas que estão postas,
fazer com que a passagem de todos eles tivesse a garantia do acerto
de contas promovido por um médium.
E
assim, quando surgem os flashes desse paraíso-no-limbo,
o que vemos são figuras oblíquas, colocadas lado
a lado contra um fundo claro, todas elas olhando tristemente para
um fora-de-quadro que não se completa, que não produz
eco. O céu segundo Eastwood, como aqui na terra: é
o espanto do soldado que chega à caverna onde Iggy acaba
de ser explodido em A Conquista da Honra; o treinador
que caminha no contra-luz pelo corredor do hospital em Menina
de Ouro; o flash branco do último momento de
Kowalski antes de sua própria morte em Gran Torino;
o cowboy melancólico que abandona uma cidade em chamas
em O Estranho Sem Nome - todos eles tão estranhamente
próximos da maneira como Além da Vida filma
o lado de lá. Restam, é claro, os encontros, as
coincidências, os destinos cruzados que formam essa teia
de sentimentos terrenos, já completamente operacionalizados,
e sempre tão potentes e tão transformadores. Mas
agora o cinema de Clint Eastwood já atravessou definitivamente
a fronteira, e tanto lá como cá, a idéia
de viver é feita mais de sombras que de luz.
Março de 2011
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