Viagem Maldita (The Hills Have Eyes),
de Alexandre Aja (EUA, 2006)
por Eduardo Valente

Choque e terror

Uma verdadeira febre tem acometido redações mundo afora: a de analisar quase todos os filmes feitos nos EUA hoje como uma metáfora sobre o Governo Bush. Na pressa, pretensamente “antenada”, que caracteriza esta pandemia crítica (que podemos chamar de “bushitização precoce”), um sinal é constantemente invertido: não é a expressão cultural americana que teima em expressar as questões que o Governo Bush encarnaria; e sim o Governo Bush que é a expressão de uma antiqüíssima questão cara à alma americana. A inversão de sinais pode parecer detalhismo ao olho mais apressado, mas é o que explica que filmes feitos anos (ou ainda, décadas) antes do Governo Bush, possam perfeitamente se encaixar nesta chave analítica supostamente atual.

Este certamente seria o caso de Quadrilha de Sádicos, que é refilmado agora como Viagem Maldita – com produção de Wes Craven, o diretor do filme original, de 1977. Filme que, como vários do diretor (e de uma série de realizadores que tipicamente procuraram o guarda-chuva do cinema de gênero para abrigar suas obsessões temáticas – como John Carpenter ou George Romero, para ficarmos em dois), fala de duas Américas: uma de sonho, espaço das relações familiares que se mantêm sob o manto da normalidade e felicidade, ainda que construídas sobre a outra América, a dos pesadelos escondidos debaixo do tapete. Basta lembrar de dois de seus filmes, sintomáticos já nos títulos que, de tão expressivos (em felizes traduções infiéis) nem pedem que o espectador os tenha visto para entender o paralelo: A Hora do Pesadelo e As Criaturas Atrás das Paredes.

O novo Viagem Maldita não foge (nem poderia) desta temática que Craven persegue desde os anos 70. Por isso mesmo, se existe algo neste novo filme que nos fala tipicamente sobre os anos 2000 (portanto, sobre o mundo sob Bush), isso está menos na dimensão do tema, e muito mais de como esse tema é colocado em cena. Chama a atenção no filme a auto-consciência que demonstra das suas preocupações e como coloca-las em cena. É como se o principal hoje fosse justamente tirar a discussão do espaço da “mensagem subliminar” (onde tantos discursos se escondem na história do cinema americano), e jogá-la na cara do espectador. Se antes era preciso algum esforço para notar as dimensões sócio-políticas do que se dizia nos filmes de gênero (tanto assim que até hoje há os que discutam se isso não é “coisa de crítico”), é difícil imaginar alguma discordância sobre o tema principal deste Viagem Maldita: em primeiro lugar, o peso da História americana, sob a luz da dominação mundial ao custo da criação de um grupo de “indesejados imperfeitos”; em segundo lugar, a crônica da atualidade política local, encarnada no conflito intra-familiar entre o pai de família reacionário, religioso e republicano (“reze a Deus e passe a munição”) e o genro democrata pseudo-humanista.

Sob a luz deste tema, são deveras impressionantes (e um tanto niilistas) as conclusões a que o filme chega sobre os dois grupos partidários: de um lado, o pai da família morrerá crucificado e queimado; de outro, o jovem pacifista e contrário ao uso de armas se tornará um vingador ensandecido e sádico, uma vez exposto ao trauma da possibilidade da perda daquilo que é seu. Igualam-se, assim, aos seus atacantes, que usam como justificativa para sua violência (igualmente insana, não há nada romantizado nos “pobrezinhos dos deformados”) a sua origem e o seu desejo de vingança: “You’ve made us what we became” (“Vocês nos fizeram o que nós nos tornamos”).

Mas, para além da dimensão do discurso, Viagem Maldita guarda suas melhores recompensas para aqueles que acreditam que, na arte, forma e conteúdo são duas faces da mesma moeda – e que tanto melhor será o filme onde ambos falam o mesmo idioma. Incômodo no seu conteúdo (afinal, o espectador não é levado a compactuar com nenhum lado, e paira sobre o filme com uma indiferença bastante desconcertante – além de uma insegurança sobre as regras do jogo no gênero, uma vez que o filme mata bem cedo alguns personagens nada “esperados”), Viagem Maldita é muito mais incômodo ainda na forma, e aí se encontra seu verdadeiro trunfo. Afinal, para falar da violência que os seres humanos impetram uns aos outros (em plena consciência, é importante dizer), não há outro discurso possível que não o da violência, que parece transbordar da tela em Viagem Maldita. Entre outras cenas, assistiremos no filme a: canibalismo, um homem sendo queimado vivo, duas mães mortas em questão de minutos, abusos sexuais, um homem colocado numa caixa com pedaços de corpos. É o filme mais incômodo a lidar com as imagens de violência no cinema americano recente - talvez, desde Aniversário Macabro (filme de Craven, de 1972). Só que enquanto este era feito de maneira underground, fora dos grandes estúdios, a violência desenfreada de Viagem Maldita chama ainda mais a atenção por ser produzida pelo mainstream - talvez seguindo um filão recente de violência gráfica e sadismo (Jogos Mortais, O Albergue).

Só não perceberam que, como quase sempre nos filmes de Craven, o incômodo da violência no filme de Alexandre Aja, ao contrário do que alguns ingênuos críticos viram no filme, não vem dela mesma. Aliás, parece incrível que ainda haja quem não entenda que a violência na arte nunca terá valor, positivo ou negativo, em si mesma – uma vez que é apenas mais uma forma de expressão humana. Para parafrasear o marketeiro político americano: “é o contexto, stupid!”. Em Viagem Maldita, não se trata da violência banalizada, cool, a ser digerida e comemorada com um sorriso ou um grito de “yeah!” (como nos jogos eletrônicos em primeira pessoa ou em filmes como Bad Boys II ou o citado Jogos Mortais). Ao contrário: no filme ela nada tem de asséptica ou distanciada, para consumo cheiroso ao lado da namorada assustada que pula nos ombros do rapaz. Ao contrário: aqui a violência parece ter cheiro e feder bastante. Não é grafismo ou satisfação espectatorial que se busca nas cenas violentas em Viagem Maldita, mas o engulho. Por isso seria interessante ao crítico tentar entender que filme se está vendo ao escrever: quando um pacífico democrata, desfigurado pelo sangue e o inchaço, crava uma bandeira dos EUA na cabeça do abjeto e acerebrado produto das experiências atômicas do país, não se pode exatamente falar de uma “vitória da violência”. Afinal, a violência de Viagem Maldita é a do ser humano desesperado, lutando para sobreviver, capaz do pior. É uma violência exasperante, enojante, animal. Vitória? O termo não se aplica.

Até porque se há um tema que perpassa o filme em todos os seus aspectos, é o da conseqüência palpável de todo ato violento. Seja no sentido traumático-psicológico dos personagens, seja na estrutura quase didática de sua narrativa (a ver simplesmente a cínica seqüência de abertura, com as explosões atômicas e a música dos anos 50). Mas, principalmente, a violência tem efeito físico: não me lembro de um outro filme que os cadáveres (melhor seria dizer, as carcaças) humanos tenham uma presença tão sufocante em cena. Os mortos não vão embora praquele limbo espacial da maioria dos filmes: seus corpos continuam lá, com seu peso, seu mau cheiro, a lembrança daquele que não mais respira. Não são abstrações de dor: são presenças físicas, matéria morta em decomposição. Ao final do calvário, resta ao espectador não a agradável sensação de hora e meio de sustos artificiais, mas sim um embrulho no estômago – e, na boca, um gosto de sangue e poeira como o dos personagens, sem direito a redenção.

O ciclo continuará eternamente, nos diz o plano final – que dá de dez nas pseudo-complexidades da “câmera de vigilância” de Caché. E que é, aliás, apenas um entre vários momentos do filme que fazem lembrar o recente Madrugada dos Mortos, filme do também estreante Zack Snyder que, refilmagem de um clássico do cinema americano de horror-político, não ficava contente em apenas cloná-lo, e sim o atualizava e trazia inexoravelmente para o hoje (do mundo e das imagens). Entre o shopping tornado espaço comunitário do Madrugada e o cemitério de carros e a cidade-fantasma de Viagem Maldita vemos dois belíssimos usos do deslocamento de sentido na construção dos cenários e do espaço a ser filmado. Ambos os filmes honram a herança de Romero e de Craven, pois entendem que um filme não é melhor apenas porque pensa o mundo sob um determinado olhar, mas acima de tudo porque pensa uma maneira de olhar para ele, de se expressar em cinema, que não pode ser copiada em nenhum outro meio.


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