ensaios Filme-túmulo por
Luiz Soares Júnior
Histoire(s)
du Cinéma, de Jean-Luc Godard, é um monumento. Ou melhor: um museu, monumento
paradigmático da cultura, em nosso século. Como todo documento de cultura, entrevê-se
em Histoire(s) uma experiência de barbárie, porém. O filme é encadeado
por uma suíte de emblemas, de manchetes polemistas, frases bombásticas, petardos
demagógicos, já que retirados dos contextos (e textos) originais. Muitas vezes,
títulos: os livros que Godard amou, amaria ter escrito, as idéias fisgadas entre
as malhas da palavra e o degredo silencioso – inimaginável – do que não pode ser
dito e permanece “irredimível” (e Histoire(s) é, de certa forma, um filme-tributo
aos mortos da História e do cinema, aos esquecidos, aos não mais representáveis;
filme-túmulo, suma iconográfica do martírio). Alguém lembra da definição de Serge
Daney do plano dos Straub como plano-túmulo? As coisas se perfazem numa mesma
intuição: a imagem é o refúgio dos que foram derrotados, dircursivamente, pela
História; dos que “não tiveram direito à palavra”. Ela os guarda, os conserva:
berço, túmulo, relicário. Referi-me a princípio à experiência de barbárie
sobre a qual o filme se assenta. O princípio da analogia repousa na instituição
“museu”, paradigma clássico do século 19, século catalogador, maníaco por excelência,
para fixar, conservar “estes séculos que nos contemplam”. Retenção da fase anal
típica, essa, estereotipada e tipificada no sujeito prototípico desta experiência:
o colecionador. Pois bem: o museu é a figura-mor desta tara, desta operação cumulativa
e catalogante, típica do cientificismo do século 19, pela acumulação dos fatos,
dos eventos. História, tal como concebida em uma perspectiva dinâmica e utopista,
é o estudo dos fatos situados em seus contextos, interpretados por um sujeito
do conhecimento; mas o fantasma do museu, sua obsessão, é o inventário do fato,
isolado do contexto; do objeto, e não da sua situação. O museu nega o fluxo do
devir, contenta-se com sua petrificação em crostas pontuais, as efígies do sentido. Mas
há uma experiência histórica – embora fantasmagórica, velada, in-significada –
que sustenta esse painel característico da cultura, e esta não cheira nada bem:
é o saque das tropas napoleônicas, a destruição das pequenas aldeias da Europa
central, o roubo de suas imagens de culto, dos núcleos de suas unidades de significação
e ritual, em torno das quais a comunidade se reunia. Tudo isto foi parar nos museus.
Objetos destacados de suas Histórias, de suas trajetórias no tempo e no espaço:
ofertas zumbis de um mundo ao qual é negado o direito de significar; mundo deslocado,
espoliado, violado. A estátua etrusca deixa de ser centro de um mundo, vira um
souvenir de plástico. Os institutos, super e metodicamente documentados, dos nazistas,
a mentalidade do turista moderno (colecionador de cartões-postais, de figuras
reificadas de um mundo natimorto), são instituições que documentam a alienação
da cultura e, em um mesmo movimento, a sua cristalização. A sua institucionalização:
cultura-monumento, paradigma, franchising.
Ora, Histoire(s),
a princípio, contenta-se em ser justamente isto: catálogo de objetos parciais,
destacados de suas origens, ditos (e reditos) em tom bombástico, demagogo. Há
um processo bárbaro em ação, de reapropriação de conteúdos de culturas diversas
que, transpostos para outros contextos (e culturas), perdem validade, vitalidade.
O fantasma da alienação que ronda o museu- antasma dos corpos espoliados nos saques
napoleônicos também ecoa em suas abóbadas. E quantos ecos este filme contém! Como
todo filme-fantasma, aliás. No caso, uma “Suma Teológica” de fantasmas. Mas, Godard
não pára por aí. A barbárie de Histoire(s) é reprocessada, por sua vez,
pela operação alegórica que Walter Benjamin adorava representar como o horizonte
messiânico necessário ao historiador moderno. Não um catalogador, mas um intérprete.
Aqui, cito uma frase de Horkheimer que ilustra perfeitamente este caráter “redentor”
da alegoria: “A totalidade, para encontrar o seu outro (para ser Outra), precisa
ser fragmentada”. Acrescento: triturada. Precisa se reencontrar no estilhaço e
no detalhe. Aliás,
sob esta perspectiva pode-se dizer que Histoire(s) é uma série de planos
tableaux essencialmente desvirtuados e resituados pela ação infecciosa
– e insidiosa – de planos de detalhe, de closes, de panorâmicas que se irisam
pela brusca interposição de curtos-circuitos dialético-cognitivos. Essas culturas
– ou melhor, estes trechos de cultura, estes objetos enxertados, violentamente
subtraídos às suas gêneses -, voltam a posar diante de nós (le refoulé!),
mas pervertidos pela “mistura”, estriados e contaminados por outros objetos, outros
textos e contextos. Ao invés da ordem simétrica, cardinal do museu, que oculta
a origem bárbara da reapropriação de conteúdos, o magma dialético de um afresco
terrorista: um mundo feito de partes, de objetos parciais, inassimiláveis à totalidade,
ao seu trator-monstruoso, o trator destruidor e deglutidor – pulsão de morte canibal
em sua versão civilizada, excretora, etc – dos mundos desaparecidos, de que somos
agora testemunhas. O papel da memória em Histoire(s) é a liga deste
panorama de contrários, em que configurações locais, regionais de sentido fecundam-se
mutuamente. No museu, pela disposição marcial dos objetos, pela suntuosidade do
espaço, somos levados a julgar o desfile de barbárie como o efeito de um mundo
reconciliado, límpido, sem suturas ou fissuras: um mundo íntegro. A harmonia do
ideal classicista enfim reconstituída. Mundos sem rasuras, sem rastros nem resquícios,
sem olhares que se voltam para trás. Sem luto.Os mortos são jogados pra debaixo
do tapete. Mortos ainda uma vez. Vitória da cognição contabilista, que “inventaria,
dispõe, conta” presenças raquíticas, desprovidas de aura. O mesmo rigor que encontramos
nos inventários macabros dos campos de concentração, registrados em Noite e
Neblina: quanto posso ganhar com isso ainda? Com estes cadáveres, com estes
destroços? Experiência como fichário de registros.
Em
Histoire(s), a memória impõe uma outra suntuosidade, a elegíaca. Ela não
“registra” a “presença que resta”, o traço da barbárie, mas “canta” a ausência
presente. Canto fúnebre, é claro, como o que cabe a toda elegia. Mas, para além
dos vestígios de sangue da História – signos mnemônicos do trauma, sintomas, cicatrizes
de um corpo ulcerado pelo desencadeamento caótico dos eventos, as filhas e os
túmulos abandonados no atropelo da fuga -, temos em Histoire(s) a superposição
de marcos – traços, rastros, sinais – que permanecem como baluartes de um mundo
desaparecido. Ao invés de Freud e sua cadeia sintomatológica, Benjamin e Ricoeur,
com seu círculo hermenêutico. Falando nestes autores, devemos lembrar que esta
é uma vivência, aliás, que a cultura judaica, baliza indisputável da tradição
interpretativa do mundo civilizado, conhece bem, pelo perigo a que foi constantemente
exposta ao longo de sua História, de tornar-se um objeto da barbárie.
O
olhar que se põe aqui – assim como na Histoire(s) sobranceira e desoladora
de Godard – é o olhar da testemunha, não do sobrevivente. O sobrevivente é um
campo de cultura dos sintomas, dos traumas; ponto de vista clínico, reativo, cúmplice
da barbárie. A testemunha é a figura utópica – resistente, insistente, embora
claudicante – que destaca e “se define” em relação a (e para além de) este circuito
demoníaco. É um olhar ao qual responde – (cor)responde – o olhar dos massacrados.
Pupila como reduto da aura, ponto de vista como guardião do luto. Este é um ponto
de vista muito parecido com o do artista, ou melhor: com os papéis de radiografista
moral – mas de uma moral polifônica, poliglota, à espreita do “diferir” – e de
testemunha-flanêur de um melancólico revisionismo exercidos por Jean-Luc Godard
a partir dos anos 80. Dezembro de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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