Histórias que Só Existem Quando Lembradas,
de Julia Murat (Brasil/Argentina/França, 2011)

por Thiago Brito

Historias que...Enquadrar

Em Histórias que Só Existem Quando Lembradas, duas coisas são importantes: de um lado, o desejo de reclusão; do outro, a necessidade (e não a vontade) de encontrar seu lugar no mundo; de, enfim, pertencer. Os dois pontos não são mutuamente exclusivos, mas se interpenetram e lançam um sem número de questões e dúvidas, que muitos filmes brasileiros aparentemente procuram resolver. No caso de Histórias..., a característica reclusiva da pequena cidade nos indica que, para resolver o segundo ponto, uma aposta é feita ao outro lado da moeda: saímos do grande centro, e rumamos para o interior. Se a cidade grande se tornou sufocante, uma mixórdia indistinta de referências e signos, e sua opulência, mais do que criar uma diversidade de vielas, abarrotam ou bloqueiam a vista, a "fuga" para um interior cada vez mais interior, mais recluso e esquecido, aparece como um horizonte em branco, um espaço onde possivelmente alguma coisa possa permanecer, fincar e então desenvolver-se. O interior, assim, renasce como possibilidade de renovação, um espaço que se transfigura de um passado atrasado, para um presente vivificante.

Um dos pontos mais interessante do filme de Julia Murat vai exatamente na perspectiva clara de que a viagem não é tão interessante quanto o ponto de chegada. Ou melhor, se por uma década a estrada se apresentou como um espaço de sobrevivência para uma boa parcela dos filmes brasileiros, ou pelo menos experiência, estamos agora diante de um filme que quer chegar e se alojar, de uma personagem que não quer, como Rita mesmo coloca, fingir pertencer a um lugar que não pertence. Sua viagem tem um desafio e um objetivo: voltar a pertencer, encontrar, ao invés de uma imagem fantasmática da vida, ao invés de um fluxo eterno de sensações, também a necessidade de se acomodar em um espaço, em uma comunidade, entrar em comunhão. E, para atingir este objetivo, é pedido a Rita que force seu caminho dentro daquela comunidade, que incomode sensivelmente seu cotidiano e procure um contato efetivo. Então, note: este contato não pode, em absoluto, se dar de forma indireta, afastada; a personagem deve se apresentar integralmente - isto é, não pode fingir gostar do que não gosta, ou ser da maneira que não é. Taí, uma radicalidade maravilhosa: se é pra encontrar um espaço ou comunidade onde se decida viver, é preciso fazê-lo integralmente, sem falsas modéstias ou admiração maravilhada. Em um sentido, é o que faria da viagem da personagem não uma fuga, mas um ato corajoso.

O filme inicia nos comunicando um pouco o ritmo e tempo do cotidiano que impregna aquela sociedade. Os planos longos, calmos, e a repetição dos atos, frases e situações, nos indicam um certo "parar" no tempo, um estágio de vivência em que todo tipo de perturbação foi rechaçado e a vida pode seguir seu rumo em um modo praticamente automático. A chegada de Rita, a jovem, causa, no primeiro minuto, um pequeno ruído. Aos poucos, ela busca uma relação mais direta com os outros habitantes. A fotografia, aqui, serve a uma dupla função: se de um lado pretende "expressar" aquilo de mais evidente na pequena comunidade (sua característica fantasma, a tendência a um desaparecimento dos habitantes, a permanência de suas ruínas - em suma, de seu passado silencioso e profundamente instigante), ela também servirá como modo de contato, de diálogo, de relação.

Historias que...Aos poucos, o hábito fotográfico de Rita se transforma em uma ponte para relacionar-se com a comunidade. O ápice evidente é o momento quando Madalena finalmente se deixa fotografar por Rita. Desnuda, a fotografia de Madalena é a expressão de seu medo, a confirmação e negação de sua existência: exposta, diante de uma parede em ruínas, sua figura é fantasmática, seu sorriso guarda a passividade de quem reconhece o momento que deve esvair, transportar-se para "o outro lado". Madalena, então, perde seu medo da morte, aceita a transitoriedade natural da vida, rasga finalmente a capa cômoda do cotidiano, e se deixa levar. O ato fotográfico é uma experiência quase religiosa, o momento em que alguém irá se abrir e sua alma será captada. Aqui, talvez, capturada.

Trespassada pela experiência, Rita toma uma decisão: "não tem mais ninguém para fazer o pão", lhe responde Antônio. É precisamente este um dos grandes problemas de toda a saga. É nesse momento que pertencer acaba se tornando, na verdade, se encaixar - de certo modo uma substituição Rita/Madalena que mais vale como prêmio de consolação a uma tentativa frustrada de auto-renovação. Encaixar-se é um ato prioritariamente passivo, e é como se Rita, agora desesperançada, tivesse a completa consciência de que isso é o melhor que se pode ter. De certo modo, essa resignação expressa integralmente uma percepção da imagem que o filme calmamente urdiu: de um lado, expressiva e artística; de outro, nostálgica, destrutiva. Do binômio vida/morte, Madalena desaparece e Rita se encontra, deixando-se enquadrar. 

Outubro de 2011

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