in loco - cobertura dos festivais
Hoje (Aujourd'hui), de Alain Gomis (Senegal/França, 2012)
por Filipe Furtado

Mitologia do presente

Hoje se refere a um dia na vida de um senegalês, Satché (interpretado pelo poeta hip hop Saul Williams). Mas não um dia qualquer, e sim o que ele acorda sabendo tratar-se do último de sua vida. Alain Gomis entrega seu jogo já nos primeiros planos em que capta a percepção de mundo desorientado do protagonista ao acordar. O filme vive constantemente em seu momento, buscando captar uma experiência do imediato - mas não o imediato do contemporâneo ao qual a expressão normalmente sugere, e sim um imediato artificial que se revela suspenso no tempo. A construção é toda baseada na percepção de um tempo presente que o filme busca deslocar do tempo, um hoje que é também ontem, que pertence a uma história. Hoje procura se instalar numa contradição, uma espécie de mitologia do presente.

A performance de Williams é bem indicativa da construção peculiar do filme: ao mesmo tempo um trabalho exclusivamente físico e constantemente removido num tom passivo. Ele é um homem que só se expressa através do seu corpo, mas que permanece impotente diante do que experiencia. A certa altura, um tio chega a lhe demonstrar como seu corpo será embalsamado no dia seguinte, sem que Williams esboce qualquer reação. É desta opção que surge muito do estranhamento de Hoje, da impressão constante de que ele busca permanecer obscuro a despeito de uma narrativa que não poderia ser mais clara, desde sua progressão, do nascimento junto à família, até a morte, em meio a esposa e filhos, e múltiplos encontros ritualizados ao meio do caminho. Gomis tem queda pelo mesmo truque de amplificar a passividade de Williams sempre que o filme precisa de uma energia extra – até o ato final, quando o Satché chega em casa, e o cineasta, diante da iminência da sua morte, finalmente reduz o tom e entrega o filme ao seu ator central.

Há uma tensão constante entre a fotografia digital de Crystel Fournier e a fabulação com que Alain Gomis vai preenchendo as margens do seu filme. As imagens decalcadas, buscando uma potência em cada momento, uma vivacidade do instante via muita diluição do cinema contemporâneo (pensemos em alguns experimentos similares de Claire Denis, por exemplo) são constantemente sabotadas pela encenação ritualizada do longo funeral que Gomis busca registrar.  Hoje se abre com um “era uma vez” e é esta expressão que a câmera de Fournier tenta sabotar, enquanto as demais escolhas de Gomis frequentemente a reestabelecem. É uma oposição que complementa outra, entre a tarefa fúnebre do protagonista e o universo vibrante à sua volta. Se há um valor em Hoje ele esta justamente em deslocar a lógica habitual do seu recorte: o que há de vivo e forte no seu retrato não nasce do registro urgente do cinema contemporâneo, sempre pronto para codificar o mundo numa mesma linguagem para festival, mas naquele era uma vez inicial, numa ideia de Senegal que ressoa com força para além das suas imagens.

Se Hoje fracassa no seu intento, é que seu desejo de repousar num Senegal para além do olhar do cinema contemporâneo se revela ele próprio somente um exercício diferente em mitificação. O fora do tempo mitológico chega aqui pronto; a história do encontro entre ele e o protagonista, completamente pré-ordenada. As referências a Satché estar retornando da América só reforçam a ideia de um Senegal profundo que chega tão pronto ao cineasta quanto suas imagens pseudourgentes chegam ao circuito dos festivais. O filme tateia um caminho para fugir de seu beco sem saída estético, mas encontra outro no seu olhar. Deste, não haverá como Hoje escapar.

Outubro de 2012

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