in loco - cobertura dos festivais
O Homem que Desafiou o Diabo, de Moacyr Góes
(Brasil, 2007) por Eduardo Valente O
diabo é a filmagem Existem pelo menos três formas
diferentes de nos aproximarmos deste Homem que Desafiou o Diabo. Se escolhermos
chegar a ele pelos aspectos de sua produção, podemos pensar nele como um exemplar
típico de um recente “cinema sanguessugadas regionalidades", aonde grandes
produtores sudestinos (sejamos sinceros: na maioria cariocas) se apropriam de
obras literárias e/ou teatrais e/ou folclóricas e/ou históricas de diferentes
partes do Brasil, e lá estacionam suas jamantas produtivas – levando seus técnicos,
atores, produtores, e tirando dali, quase sempre, financiamento local, mão de
obra barata e algumas imagens e costumes, quase sempre exotizantes. De tão numerosas,
é até desnecessário tentar listar todas as produções que seguiram por este caminho
na produção brasileira pós-1995, mas cabe notar como a L.C. Barreto, produtora
deste filme aqui, parece estar se dedicando com afinco ao expediente: lembremos
de Bela Donna, de Paixão de Jacobina, de Nossa Senhora de Caravaggio
– curiosamente todos eles pretensos “filmes populares” que não encontraram qualquer
retorno efetivo de público (como de resto parece ser a sina deste novo filme). No
entanto, sendo este texto uma crítica do filme e não uma discussão de política
audiovisual brasileira, cabe menos julgar tal fenômeno em termos de produção
nacional, e mais tentar ver como este processo resulta visível nas imagens do
filme. E aqui podemos falar em parte tanto da presença absolutamente despropositada
de uma série de atores tipicamente sudestinos-globais em papéis para os quais
parecem incrivelmente inadequados (isso é, para além do suposto interesse de marketing
que, aparentemente, eles nem chegam a gerar tanto assim); quanto do teor exotizante
que muitas das imagens claramente criam (onde resultam especialmente feias as
cenas externas do forte à beira-mar). No que tange o elenco, são incômodas principalmente
as presenças de Fernanda Paes Leme e Flávia Alessandra que, atributos físicos
à parte, simplesmente tiram qualquer credibilidade de suas personagens (credibilidade
esta analisada aqui dentro da lógica não-naturalista do filme, bem entendido).
Mas, não são as únicas: Sérgio Mamberti e, pior ainda, Leandro Firmino da Hora
surgem beirando o ridículo, em papéis pequenos, mas bastante importantes – e cuja
desproporção fica dramaticamente exposta quando entra em cena alguém como Livia
Falcão ou Helder Vasconcellos, atores locais que defendem com enorme galhardia
seus personagens. No meio do desastre geral em seu entorno, podemos até dizer
que Marcos Palmeira não compromete (e entre os coadjuvantes quem tem melhor presença,
até pelo caráter ainda mais radicalmente “artificial” de seu personagem, é Leon
Góes, como o corcunda – além de Lucio Mauro, sempre dominando sua presença cômica). Uma
segunda maneira de nos aproximarmos do filme seria como projeto de dramaturgia.
Neste caso, o filme deixa clara sua filiação a uma tradição picaresca algo épica,
encarnada no personagem de Ojuara (Palmeira), curiosa figura de herói cujas "pelejas"
(título do livro que origina o filme) claramente são devedoras dos
12 Trabalhos de Hércules. Ojuara, como um Hércules dos trópicos,
tem sua fama mítica acima de tudo devido a sua “macheza”, - que, se tem
aspectos contestadores interessantes (impõe-se ao coronelismo ou ao beatismo),
inegavelmente tem fortes aspectos de machismo (já que as mulheres sempre surgem
aqui como prostitutas, verdadeiras vaginas dentatas ou idealizações de
“santinhas”). Mais do que sua origem, porém o projeto de cinema popular de Moacyr
Góes aqui traçado parece buscar uma bastante curiosa aproximação com um universo
de cinema popular brasileiro típico dos anos 70: é de longe o filme recente para
grande público que mais desbragadamente filma sexo e mulheres com pouca roupa,
adota o palavrão como figura de linguagem constante e encena determinados momentos
como um autêntico herdeiro dos Trapalhões (a ver, principalmente, a cena com Otto
ou a solução da sequência com Flávia Alessandra). No entanto,
se tentar ver o filme pela ótica da produção ou de suas propostas dramatúrgicas
pode nos levar a algumas compreensões bastante interessantes do que vemos na tela,
é impossível dar a qualquer uma destas duas dimensões a primazia da análise de
O Homem que Desafiou o Diabo, pois precisaríamos passar por cima de uma
dimensão muito mais comesinha e direta: a do seu artesanato, puro e simples. Sim,
porque Moacyr Góes até tinha razão ao reclamar em um artigo no jornal O Globo
da crítica publicada lá, que era francamente preconceituosa, elitista e, em última
instância, muito mal argumentada – e que simplesmente não aceitava previamente
que se buscasse fazer um cinema popular baseado no binômio sexo-comédia rasgada.
E, de fato, não é em seu projeto de cinema, produtivo ou dramatúrgico, que se
encontram os maiores pecados do filme (afinal os mesmos processos já resultaram
em filmes bastante interessantes como Lisbela e o Prisioneiro ou O Auto
da Compadecida), mas pura e simplesmente na sua realização. Porque
o problema não é o que O Homem Que Desafiou o Diabo quer fazer, mas a maneira
como o faz. Pois, de fato, se há algo que tem caracterizado o “autor de cinema”
Moacyr Góes é o profundo desleixo visual de seus trabalhos, que misturado com
a mais cabal obviedade e a dificuldade de, dramaticamente, dar cabo de construir
suas narrativas (onde a melhor delas ainda continua sendo Maria, a Mãe do Filho
de Deus), acaba fazendo ruir o interesse até considerável que
poderíamos ter pelo projeto deste filme aqui.
Sim, porque não é
no geral que O Homem... atira no seu pé, mas no particular, a cada cena,
a cada encadeamento narrativo. Citemos alguns exemplos, então, para que não fiquemos
só no discurso sem evidências. A introdução do filme, que leva José Araújo a se
tornar Ojuara, é encenada/montada com tal correria que parece um trailer, onde
cada cena equivale a uma informação básica (chega José, ele é mulherengo, ele
come Dualiba, eles casam, ela o oprime, ele se revolta). Assim, como não sentimos
a duração de qualquer daquelas situações, a idéia mesmo desta mudança soa somente
ridícula e a impressão que fica é que ou o filme poderia simplesmente prescindir
dela e narrar só as “pelejas de Ojuara” propriamente ditas ou precisaria encenar
tudo aquilo com um pouco mais de cuidado. Este andamento se mantém pelo filme
todo, e a acumulação de situações e personagens pequenos funciona para retirar
a força de cada uma das sequências individualmente. O personagem de Marcos Palmeira
parece passear pelas sequências sem qualquer presença, e o filme parece paradoxalmente
longo (porque acumula sequências demais) e sem substância (porque não nos interessamos
de fato por nenhuma delas). Mas
é mesmo na dimensão da imagem pura e simples que o filme se afunda: o tratamento
digital dado às imagens termina nos apresentando uma cópia em 35mm que varia entre
o lavado, o indiscernível e o simplesmente desfocado (não, não era um problema
do projetor, porque tanto créditos quanto closes tinham seu foco bem definido
– a questão era mesmo da definição da imagem nos constantes planos mais abertos).
Nisso, ficamos com sequências que variam do simples mau gosto na manipulação das
cores em pós-produção (a já citada visão do forte, ou o enfrentamento inicial
na chuva) a outras que beiram a indigência imagética (o encontro com os três fantasmas,
à noite). Some-se a isso uma gramática de cortes entre o banal e o desastroso
(exemplos mais chocantes: a série de fusões na entrada na casa com Antonio Pitanga
ou os cortes do casal que transa na cama para o menino que espia pela janela),
que parece quase sempre empenhada em causar um sentido de deslocalização
nos ambientes, tamanha a confusão que se estabelece, e perceberemos que
o tiro no pé de O Homem que Desafiou o Diabo nada tem a ver com seu projeto
de cinema. O fato é que, depois de seus nove filmes em cinco
anos, está na hora de Moacyr Góes decidir, afinal de contas, se vai em algum momento
“fazer cinema”. Pois se não há nada demais dele ter se "educado"
audiovisualmente em novelas e seriados da Rede Globo, é preciso entender
que a imagem, que naquele meio vale pouco, na tela grande do cinema pede uma outra
atenção. Por isso, seria melhor ele largar o discurso cansado de
que sofre preconceito por fazer “cinema popular” e se dar conta de que preconceituosos
são os seus filmes, que parecem achar que cinema popular pode/precisa ser mal
feito.
Outubro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
|