ensaios
O balanço de Hou
por Juliano Gomes

Pode-se observar na obra de Hou Hsiao-hsien, desde seu início até seus filmes deste século, uma espécie de tendência à abstração. Por isso entenda-se uma ligação cada vez menos causal e clara entre cenas, uma indefinição cronológica, e uma espécie de predominância de uma dimensão plástica do plano, especialmente após Adeus ao Sul. Seu cinema parece rumar cada vez mais em direção a uma espécie de busca de movimento puro, como veículo de fluidez ímpar, consolidando um estilo inconfundível que vai tornar a luz e o movimento (da câmera, dos atores dentro quadro e de todos os elementos contidos neste, enfim, a mise en scène) sua assinatura sutil. Por outro lado, esta predominância de uma dimensão plástica se encontra também com um traço que a ressignifica e que de certa forma a contradiz. Se abstrair é cortar as ligações com o objeto de referência, com o original, com o real, isto é, tornar a representação algo autônomo, separado que impõe suas próprias regras, provavelmente não é isto que o cinema de Hou vem realizando nesses últimos anos. E talvez um dos principais traços que atravessa suas imagens seja justamente a tarefa de tecer relações entre os elementos que mostra.

A Viagem do Balão VermelhoTodo filme de Hou ocupa-se profundamente de estabelecer uma série de conexões com um "fora". Este "outro lado"é muitas vezes a história de Taiwan, ou o próprio cinema de diretores como Ozu e Lamorrisse (respectivamente, em Café Lumière e A Viagem do Balão Vermelho - foto). Um "fora" como algo que é exterior à cena, mas que se torna presente como matéria de retransformação desta. Isso opera também em um nível mais interior aos filmes a partir de um extraordinário trabalho de adensamento do fora-de-campo (via banda sonora, fragmentação e repetição dos espaços, por exemplo). Essas ligações têm como base as séries de repetições que o cineasta exerce como estrutura de seus filmes (próximo a Ozu nesse estabelecimento de padrões, quase refrões). A linha que os embala tende ao círculo ou à curva. O estudo de suas espacialidades funciona a partir da reiteração. É preciso, em seu cinema, rever os espaços em situações distintas. Trata-se de um método quase científico, à procura de variações nos acontecimentos e em suas respectivas ausências, de luz natural ou artificial, de som e silêncio, de movimento e estase. É necessário que haja dois elementos para se fazer uma relação. E nessas relações, Hou trata-se justamente de desfazer estes pares, afirmando a partir justamente de sua diferença, seu solo comum. Não há mais natural e artificial, na medida em que convivem, oscilam, e afinal se equivalem, pois é impossível localizar-lhes a essência, um estado onde uma não influi na outra. Pois um dos traços fundamentais em sua obra é o de que toda a presença deixa marcas, e é justamente sobre presenças e marcas que vão se formar os grandes momentos de sua arte.

No explicitamente autobiográfico Tempo de Viver, Tempo de Morrer, os elementos de trabalho destas relações são a presença e ausência dos personagens em espaços determinados. Há um desejo de estudo da memória, que vai se expressar de maneira bastante impessoal, apesar do texto confessional que abre o filme. Somos apresentados a uma série determinada de espaços que vão se repetir por todo o filme, para que sintamos a força de suas variações, a amplitude das suas possibilidades de ocupação. Se ainda há um sujeito que nos fala em primeira pessoa no início do filme, e que predomina na cena ao ponto de podermos quase falar que temos um protagonista, a isto se sobreporá a força das ligações e das transições.

Um Tempo para Viver, um Tempo para Morrer"Qual a diferença entre o cheio e o vazio?" Hou parece nos perguntar a cada momento onde revemos um espaço já visto mas em outra situação de ocupação (o que era habitado se torna vazio e vice-versa). O jogo da memória se torna nosso, mais do que desse personagem principal, na medida em que é condição essencial do olhar no tempo, essa variação entre esses dois pólos. Assim funciona seu mecanismo de evocação constante aqui. Hou faz com que a ação (re)apareça no vazio que a sucede, e que pensemos o quanto do nada há na ação e vice-versa. A circularidade é a do acontecimento, que parece estar em cada um dos espaços mostrados do filme como que em latência, em loop, esperando para ser atualizado pelo olhar. Há um fora que também é temporal aqui. Uma espécie de memória virtual dos espaços, que não cessam de diferir de si mesmos, diante de nossos olhos, na sua aparente inércia. O projeto geral do filme (gravado em vários espaços onde Hou vivenciou os acontecimentos que geraram o roteiro) aponta para essa realização; de, através dessas operações de comparação de uso do espaço, fazer funcionar tais ligações, que estabelecem um solo comum para elementos em sua heterogeneidade. É justamente neste trânsito entre estados a partir de elementos definidos (personagens, espaços e situações que se repetem) que se desenvolve seu cinema, neste estado de acumulação de transições sucessivas.

Um Tempo para Viver, um Tempo para MorrerDesta maneira, ressaltando tais conexões, um filme como Tempo de Viver, Tempo de Morrer de desenvolve através de um realismo que tende também à imaterialidade. Todo o sensualismo e imanência da matéria que constitui o que vemos e ouvimos torna-se um estudo sobre a ausência e sobre os "fios invisíveis" que ligam os personagens àqueles espaços, ou a outros personagens, dentro do quadro ou do filme, e os sucessivos reenquadramentos, sublinhando sua natureza de fragmentação a priori (como algo que está sempre a não mostrar muita coisa ali "presente" e que age na imagem todo o tempo: as ausências, os passados, os futuros, afetos) - para ver é preciso fazer cortes, estabelecer zonas de preto, dar moldura, criar, enfim, separação e distância.

Talvez por isso seja difícil falar em protagonistas nos filmes de Hou, mesmo em seus filmes onde há uma predominância clara de um personagem específico. Há sempre outras forças se contrapondo a essas presenças, os empurrando para fora do quadro e se apresentando como energias igualmente presentes. Existe sempre um fora agindo na imagem, e ela mesmo é um exterior a esse fora. Trata-se de um cinema "entre outros", pois há sempre várias imagens em uma superfície, várias forças em jogo. Seu cinema vai realizar esse cruzamento múltiplo, inicialmente via linhas do quadro, fixo, e pela montagem reiterativa em relação aos espaços; e, a partir de Adeus ao Sul, se ocupando de e radicalizando as ligações que se dão numa mesma duração, num mesmo presente, estudando tais "fios invisíveis", os raios que ligam os elementos em simultaneidade.

Café LumièreA radicalização de procedimentos que ocorre no cinema de Hou Hsiao-hsien a partir do final dos anos 90 o direciona para uma maior impalpabilidade. Em filmes como Café Lumière (foto) e a Viagem do Balão Vermelho, o que ocupa a tela é quase que somente oscilação pura. Só existe o que se move. Mas os movimentos são sempre simultâneos. É necessário que o olhar aja. A câmera passa a se mover mais para tentar traçar esses trânsitos constantes dos corpos pelos espaços. Não há mais centro, pois nada pode ficar em repouso. Estar em repouso é não estar vivo para o olho. Os espaços vão se tornando menos profundos pelo uso cada vez mais freqüente de lentes teleobjetivas, que aproximam os objetos uns dos outros, condensando os espaços que os separam. A tela vai se tornar ainda mais uma superfície de contato. As ligações passam a se dar nessa convivência de durações no mesmo plano. O campo de visão menos extenso vai servir para que se possa tecer com exatidão quais partes se relacionam naquele determinado momento, e o que só se pode manifestar naquele ínfimo irrepetível.

Seu cinema vai em direção às possibilidades de modulação, isto é, de alteração de fluxo, de tentar fazer aparecer esses raios luminosos e suas ondulações que o formam como substância (toda luz e som é formada por onda, por linhas de ausência e presença). Café Lumière se estrutura principalmente através das variações de luz e de sua circulação entre estes estados luminosos, através dos espaços em movimentos (trens) e das superfícies translúcidas (roupas no varal, cortinas, janelas). Para poder fazer ver, é preciso haver distância: da câmera em relação ao personagem, pela lente tele, que deixa os personagens livres e os segue em seu movimento particular; e distância entre os personagens e elementos da cena, para que se possa fazer uma relação entre eles dentro de sua simultaneidade através da câmera, que não cessa de escondê-los e ligá-los uns aos outros. Não se enxerga o que está muito perto. Mas as distâncias permitem o contato, as ligações, e elas são diretas. Esses laços visíveis e invisíveis, de cor e sentido, são o que Hou faz propagar a todo momento. Café Lumière vai encenar tal acontecimento em sua cena central (fotos abaixo), onde cada personagem ocupa um trem e, através da oscilação visual que a janela do trem em movimento causa ao olhar, um personagem enxerga o outro, este gravando o som dos trens. Dois em movimento, duas durações colocadas em relação direta, em relação de luz - essa é sua condição temporal, essa coexistência de ritmos no presente.


Som e ritmo talvez sejam os parâmetros mais precisos de análise para se aproximar de sua obra. Som como oscilação, como algo invisível e que se faz presente na cena e que a condiciona, que dá seu tom. Som como simultaneidade de ritmos e como relação de padrões temporais e de quebra destes. Som como abstração, como elemento que mais facilmente só se refere a si mesmo como constituição de si. A Viagem do Balão Vermelho, cuja estrutura é absolutamente musical nos seus encadeamentos internos (dos elementos da cena) e externos (com todas as ausências e "foras" que a imagem não cessa de estabelecer), mostra duas sequências que funcionam como uma espécie de comentário a este traço da obra: no auto-explicativo encerramento com uma canção, e na exuberante cena do afinador de piano.

A Viagem do Balão VermelhoPara que possa haver a canção final, onde tudo parece dançar em nossa memória, é preciso afinar. Tal cena da afinação nada mais é do que um desfile de ritmos (não se pode deixar de mencionar a performance absolutamente deslumbrante de Juliette Binoche como fábrica de variações temporais, de tons, de timbres, num trabalho que ressoa Gena Rowlands dos filmes de Cassavetes na sua variedade e polirritmia quase barroca) que precisam se ajustar (e não se igualar, senão não há mais ritmo, este só existe pela diferença) para que haja relação e para que haja conexão, vínculo. A dança circular da câmera procura se ajustar, no sentido de buscar uma harmonia para que possa se relacionar e se afetar neste tempo da duração do plano. A abstração em Hou vai tomar a forma musical em sua sutil presença e desaparição, como partes que só existem em relação, como relação que só existe em um tempo específico, em movimento, e um processo que busca essa apuração em direção a uma freqüência, a uma oscilação que dê margem para que as oscilações possam existir e formar esta composição rara de matéria disposta no tempo e sua variedade infinita de ritmos, padrões e quebras, a partir de seus temas. O cinema de Hou não cessa de se equilibrar justamente sobre essa corda entre o realismo e a abstração, entre o mostrado e o escondido, entre a intuição e a racionalidade, entre o planejamento e espontaneidade absoluta, e sua tênue mestria é exatamente manter-se, cada vez mais alto, sobre este fino feixe.

Junho de 2011

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