High School Musical - O Desafio,
de César Rodrigues (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente

Filme de zumbis

Frente a um produto como este High School Musical – O Desafio (e o termo produto é usado com muita propriedade, porque “filme” é algo que se aplicaria a esta franquia brasileira apenas de modo bastante esparso), o verdadeiro desafio se coloca é para o crítico, que facilmente poderia escolher tomar o caminho fácil (além de possivelmente bem verdadeiro) da galhofa pura e simples. Mas, assim como em muitos casos em que os humoristas brasileiros tentam fazer piadas com alguns políticos, o perigo deste caminho é justamente a inferioridade da piada frente ao objeto da mesma. Afinal, o que mais dizer de realmente engraçado e original que um filme que se passa numa “High School Brasil” já não tenha previsto para si mesmo como parte do seu projeto? Então, resta saber se há algo mais a se extrair da experiência do confronto (de novo, um termo bastante adequado) com este High School Musical do que as inúmeras piadas possíveis quanto a sua estética ou construção dramática – porque, se não houver, talvez seja melhor deixá-lo em paz, pois como galhofa de si mesmo ele já se basta.

Estética e construção dramática são termos usados de maneira bem ampla aqui, nesta que claramente é muito mais uma operação de marketing aplicada ao cinema, do que a elaboração de fato de um filme. Pois, como franquia que é, e não faz a menor questão de esconder (muito pelo contrário), a única questão que parece em pauta aos realizadores deste HSM versão brasileira é de que formas a idéia de Brasil pode ser aproveitada para criar um produto com possibilidades de exportação a partir da bandeira criada pela Disney americana, sem com isso se tornar nem muito local nem muito, digamos, deprimente (afinal, um produto musical escapista como este não pode sequer pensar em colocar-se a questão do que significa filmar a vida de uma juventude de elite totalmente descolada do país à sua volta).

E é desta questão de como localizar o filme no Brasil, sem nunca localizá-lo de fato no país, que se espalha um dos poucos focos de interesse deste HSM – ou talvez fosse mais adequado falar em foco de tensão (algo de que o filme sente muita falta, uma vez que a narrativa em si não cria tensão alguma). Pois a verdade é que, a princípio, seria bem mais fácil lidar com este problema simplesmente criando um ambiente tão falso e irreal quanto esta tal “High School Brasil” – que faz a proeza de deixar Malhação parecendo um libelo neo-realista. Deixar que o filme todo se passasse nessa ilha da fantasia, produto de um imaginário adolescente construído sem nenhuma vergonha a partir de uma matriz norte-americana (que pode viajar e ser exportada pelo mundo inteiro sem estabelecer raízes em lugar algum), seria de fato o mais natural frente a um projeto que quer assumir tão claramente sua artificialidade como este (os figurinos do filme não deixam dúvidas de que nem mesmo os responsáveis pelo projeto acreditam que aquilo tudo tenha sequer uma sombra de realidade).

No entanto, parece ser imposto a High School Musical – O Desafio a obrigação de se passar, sim, no Brasil – muito provavelmente por compromissos de exportação que precisem levar algo de “cor local” de cada uma das franquias pelo mundo. E aí, cabe decidir: como deixar entrar o Brasil no filme, sem precisar deixar o filme entrar no Brasil? A resposta, claro, é a mais óbvia: se algum dia num passado distante se acusaria um cineasta estrangeiro quando ele vinha ao Brasil para filmar apenas seus pontos exóticos, agora temos cineastas e brasileiros dispostos a fazer o mesmo (sem o sexo, claro). Assim, dá-lhe filmar um time de futebol que joga numa quadra de salão com uma bola de futebol de campo – afinal, a bola de futebol, para ser reconhecida como tal, precisa daqueles gomos bicolores. E se é preciso dar nome de um animal ao time da escola (segundo a cartilha norte-americana de posturas), aos realizadores do filme parece uma idéia simpática que este seja o de um animal “peculiar” do Brasil, claro, como são os Lobos-Guará – espécie, como sabemos, abundante no Rio de Janeiro, onde se passa o filme.

Mas, claro, o Rio de Janeiro em questão aqui é outro que não a cidade que por acaso existe num pedaço do Brasil. No filme, ele só serve de referência por ser ainda o destino mais conhecido do país, cujas vistas podem ser minimamente reconhecidas, e por isso pode ser usado na única cena onde realmente um personagem efetivamente sai à rua para que vejamos tão somente o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar de pano de fundo quase desfocado. Essa talvez seja a sequência que explicite de vez a verdadeira relação do filme com o Brasil: ali, um personagem pedala de bibicleta pelo Aterro rumo ao Centro, apenas para poder cantar uma música frente ao mar do Arpoador – numa exploração geográfica de fazer inveja aos realizadores de filmes de James Bond. Assim é High School Musical – O Desafio: sem nenhuma culpa, usa o Brasil numa lógica que faria os idealizadores dos Simpsons corarem – porque, afinal, tudo vale, se assim o “produto” pede.

Não é questão que se esperasse um choque de realidade num filme como este, mas simplesmente cabe notar como, talvez, esta realidade pudesse emprestar a ele uma centelha que fosse de alma. Pois o que realmente impressiona no filme é como esta fantasia deslocalizada parece se esforçar para que todas as suas emoções sejam tão falsas como sua localização geográfica ou seus figurinos. De fato, a sensação maior que fica da experiência de assistir o filme é a de que ele foi todo feito por robôs, alguns deles “interpretando papéis” na tela e vários outros cumprindo seus papéis fora dela. Os que estão na tela nos fazem pensar mais de uma vez, quando por acaso desandam a dançar em grupo, numa espécie de clipe de Thriller pós-moderno, com seus zumbis todos vestindo cores fortes e excessivamente eufóricos. Pois é impossível saber de fato o que move cada um daqueles personagens em cena, uma vez que o roteiro só lhes dá clichês de motivação e obrigações dramáticas a cumprir. Nada sentimos por qualquer romance ou amizade em cena, para além da dura necessidade de que eles aconteçam para que o filme avance.

Curiosamente (ou talvez de maneira muito adequada), a personagem que mais chega perto de nos tocar de alguma maneira é a mais artificial delas todas, a pretensa vilã da história. Porque, ao contrário das clássicas antagonistas de filmes de high school americanos, aquelas cheerleaders lindas e frígidas adoradas por todos e opressivas como modelos de perfeição, há uma solidão tocante no auto-engano da personagem aqui, que apenas se imagina como uma destas meninas, mas claramente não tem um só admirador sincero (além de seu pai). Dessa maneira, sua curva dramática, ainda que pensada como antagonista, é a única movida por um sentimento que nos parece real e palpável, ainda que doentio. Por isso, quando ela é totalmente excluída da celebração fake da amizade dos outros personagens-autômatos, inegavelmente sentimos algo por ela – algo que talvez seja um resquício de revolta com a ideologia profundamente conformista e opressiva dos “bons meninos felizes” que a cercam.

Bons meninos que também são todos aqueles responsáveis pelo projeto, um inegável “sucesso” de clonagem. Bem de acordo com a ideologia de seu tempo, vendo este HSM brasileiro parecem incrivelmente distantes os dias em que, mesmo ao tentar copiar um modelo externo, acabávamos deixando nossa marca pela simples incapacidade de fazê-lo adequadamente. Não neste HSM (como não nos atuais musicais da Broadway encenados Brasil a fora): aqui, a fotografia e a câmera fazem o que se espera delas, o som idem, os números musicais também (ok, talvez o número na quadra de futebol seja um pouco mais patético do que o desejado). Mais do que os personagens-zumbis na tela, o que talvez faça deste HSM um verdadeiro filme de terror para quem o assiste com outros olhos é mesmo constatar como nos tornamos dignos copiadores, sem os riscos de qualquer resquício de alma própria a assombrar a tela. Que não restem dúvidas: o fracasso estético absoluto de HSM é, exatamente, o sucesso de seu projeto. Ou vice-versa.

Fevereiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta