in loco - cobertura dos festivais
HU, de Pedro Urano e Joana Traub Csekö (Brasil, 2011)
por Juliano Gomes

Rua de mão dupla

Através da sua história, o documentário é “amaldiçoado” pela idéia de espelho, seja “fiel” ou “estilhaçado”, na medida em que ele deveria refletir algo que preexiste a ele próprio, que seria encontrável no mundo fora do filme. Em HU, esse temor é encarado, e, mais do que isso, tornado uma espécie de eixo fundador do filme. Num primeiro nível, há um uso muito curioso da geometria e dos grafismos dos quadros, que se combinam em telas divididas, formando outros espaços, novas composições que revelam uma espécie de mesmo padrão que atravessaria toda a construção deste monumento oco que é o Hospital Universitário.
Ao mesmo tempo em que há uma desejo de exploração desse espaço como forma plástica, especialmente nessas linhas retas da arquitetura modernista, que parecem poder se combinar infinitamente, essa espécie de paixão pela linha reta revela também um limite claro que o projeto de Pedro Urano e Joana Traub Csekö tenta se desvencilhar mas não consegue, que é a crença naquele espaço como metáfora, significando “uma outra coisa”. As duplicações, ao invés de multiplicar as relações possíveis, acabam por diminuí-las, principalmente pelos discursos oficiais, que vão ratificar as primeiras impressões que se teria ao olhar para um universo como esse, de um grande elefante branco, de gestão pública sucateada, e tudo o que essa seqüência de palavras supõe.

Não por acaso, o personagem que consegue esboçar uma quebra na lógica do uso do discurso falado no filme, um homem ruivo, de costas para a câmera, de frente para uma janela, em plano médio, com soro preso ao seu branco por um fio transparente, não é um “coitado” nem um “doutor”. Um homem, cuja hesitação não se sabe se é patológica ou não, nos apresenta, em poucos segundos, uma mistura de agudeza assertiva e incerteza, ao perguntar algo que parece não ter ocorrido a nenhum personagem do filme, e nem mesmo ao próprio filme, ao fim e ao cabo: isso aqui é um projeto que deu errado mesmo? Há ali uma cena que se multiplica por todo o filme. Para quê lado ele aponta, para qual ponto da reta? Sua pergunta, sem mencionar o Brasil (não esquecendo do tom maiúsculo, e, de novo, tudo mais que essa palavra supõe acompanhar com seu tom característico), o questiona frontalmente e apresenta de maneira potente e enviesada sua indagação fundadora sobre a viabilidade de uma certa maneira absolutamente inconsequente e grandiloquente de ver o mundo que dá forma a essa grande ruína (cada metade à sua forma). Além de sua pose no quadro, seu poder frágil e fraqueza firme, que impelem nosso olhar, há algo que o diferencia dos demais corpos que falam em HU: ele não tem, junto a ele, próximo ou sobre sua imagem, um nome e/ou função, título. Ele ocupa a classe dos doentes, não é médico nem especialista.

Há outros como ele em HU: uma senhora com câncer e outro senhor à espera de um fígado. Porém, o homem ruivo representa uma espécie de resistência dentro do filme, no sentido que se materializa como insurgência à sua própria lógica de duplicidades. Sua falta de nome de alguma maneira o fortalece, ou representa justamente sua indiferença ao regime de fala dos especialistas que parecem não cessar de dizer o mesmo (os levando, pelo extremo oposto, à indiferença). Os especialistas falam pra que se veja o que estamos vendo. Vemos as imagens ao lado destes homens de jaleco para que entendamos sua fala. A presença do doente no soro é o tal enigma que dá título à dissertação de Csekö que deu origem ao filme; é sua síntese, no sentido de uma dúvida que se propaga em sua afirmação negativa. É isso que o espaço não para de afirmar e o filme parece poucas vezes tentar ouvir: há algo ali que se contém e se autoexplica em cada pedra ou pó, em cada tijolo, e que se propaga como um vazio afiado que nos pergunta tudo e se espalha para além de si mesmo como imagem, e que parece pedir que o deixe só, sem precisar ser outra coisa, um erro, um acerto, um exemplo ou um reflexo.

Se a dimensão metafórica de um projeto de país e de estética é clara e absolutamente definidora da existência e origem daquele espaço, ela, por sua reiteração, acaba por jogar contra si mesma, sendo uma espécie de “perna seca” (o nome dado à metade “inútil” do hospital) que se espalha pelo filme sobre si. Todo o trabalho de intervenção mais explícita, como a trilha sonora, os jogos de combinação de tela dividida e os movimentos de câmera abruptos, ressaltam uma espécie de violência que já reside na imagem, e acaba assim por anulá-la. Sua coragem incomum de abraçar um registro absolutamente heterogêneo, misturando fotomontagem, documentário de observação e de denúncia, e de um estudo puramente plásticos das luzes e geometrias desse palácio às avessas, acaba por se tronar uma indecisão que não permite que a relação do espectador com a matéria do filme avance. Há um fim determinado a priori, um ponto do outro lado da reta, que não permite desvios ou paradas.

O momento que não permite simetria é justamente sua morte, seu desaparecimento, o apocalipse (de todo o projeto moderno, como o filme deixa claro em suas escolhas de estilo à tradição da vanguarda) que o filme encena ao final. HU é o funeral de um espaço, de uma crença na possibilidade de um outro lugar no fim da linha. E, ao fim e ao cabo, de uma metáfora, justa. A tela preta que resiste ao final é esse indistinto sem forma, que nem mesmo preto é, dissolvendo-se em cinzas, o fim e o começo de toda a geometria e de toda a representação e espelhamento. Porém, o episódio se descola do filme e termina abrupto, apesar de anunciado, pois parece não combinar com as demais partes, intercambiáveis entre si. Nessa fumaça quase preta, quase cinza, habita uma centelha, um pavio em combustão, uma possibilidade de transformação que pode não ser a combinação das partes, que pode ser o fracasso de uma lógica e de uma matéria de onde outra pode emergir, e criar mundos, reconfigurar as perguntas, enfim, numa dialética sem síntese. É preciso manter os espaços vazios.

Dezembro de 2011

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