Guerra
ao Terror (The Hurt Locker), de Kathryn Bigelow (EUA, 2008) por
Filipe Furtado
Entre
o autêntico e o fantástico
No melhor filme de
Kathryn Bigelow, Quando Chega a Escuridão (Near Dark, 1987), encontramos
o que talvez seja o melhor ponto de entrada para o seu cinema: de um lado, um
cuidadoso trabalho para inserir a narrativa de vampiros num contexto americano
do cinema de horror (Craven, Hooper, etc.); de outro, um gosto para seqüências
viscerais que não deixam nada a dever para qualquer grande filme de ação. É um
cinema bifurcado neste prazer por se levar pelas possibilidades da próxima grande
cena de impacto momentâneo e um olhar super distanciado de quem estreou na direção
de longa-metragem com um projeto de mestrado e um dia editou uma revista de semiótica.
Neste sentido, é fácil diante de um filme como este The Hurt Locker (melhor
ignorar o titulo brasileiro) colocar um destes lados em destaque, em detrimento
ao outro, mas fazê-lo é cometer um desfavor ao filme. Para
perceber como The Hurt Locker é um veiculo perfeito para esta sensibilidade
vale a pena observar o roteiro extremamente funcional de Mark Boal: começa com
uma epígrafe (“A guerra é uma droga”) que ele segue essencialmente por ilustrar
como uma tese, até sua seqüência final, através de uma série de missões – existem
tarefas e não uma trama – nas quais a ação ilustra seus três personagens centrais.
È uma ficção profundamente americana, seja na sua crença na ação, seja na completa
transparência com que suas idéias são apresentadas. The Hurt Locker não
tem muito tempo para distrações à parte por duas subtramas um tanto mal resolvidas
(e Bigelow as filma com uma displicência que só reforça que elas estão distantes
dos interesses do filme). Nesta
ficção, ficam bem dispostas tanto as possibilidades de explorar tarefas físicas
e tensas numa série de seqüências que sugerem pequenos filmes próprios, em que
o trabalho dos soldados dobra sobre o trabalho dos cineastas (já que The Hurt
Locker é tanto um filme sobre diversas maneiras de desarmar uma bomba como
um filme sobre diversas maneiras de filmar o desarme de uma bomba), quanto as
possibilidades de mediar uma imagem e um discurso, que atraem o lado mais analítico
da cineasta – com a tese generalista de Boal servindo de porta de entrada. É interessante
observar como a idéia central exposta na epígrafe, que propõe um sentimento contínuo
e transferível para qualquer conflito, não deixa de existir em conflito com o
cuidado detalhista do filme (parcialmente cortesia do próprio Boal, ex-jornalista
que acompanhou de perto as tropas), que sugere uma especificidade do ponto de
vista. Alguns artigos sobre The Hurt Locker sugerem que parte da sua popularidade
deriva justamente do que teria de apolítico e desprovido de ponto de vista. Nada
podia ser mais distante da verdade, porém, algo que fica claro quando observamos
que esta idéia de guerra como droga é ancorada por Bigelow numa reprodução cuidadosa
da reportagem do seu roteirista sobre a experiência dos soldados americanos no
Iraque. É
curioso observar que as duas melhores obras audiovisuais sobre a ocupação do Iraque
(The Hurt Locker e a minissérie da HBO Generation Kill) têm uma
similar abordagem, voltada, sobretudo, para a experiência dos soldados que participam
da ocupação, muito mais interessadas no acumulo de detalhes do que de eventos.
São obras muito distantes seja dos fogos de artifício de Soldado Anônimo,
de Sam Mendes; do tom discursivo um tanto arrogante de No Vale das Sombras;
ou mesmo do tom acusatório dos filmes que Brian De Palma e Jon Jost realizaram
(que dizem muito mais sobre os sentimentos destes cineastas do que sobre o conflito
em si). Nem The Hurt Locker, nem Generation Kill são exatamente
obras realistas, a despeito do cuidado de pesquisa, mas apresentam um olhar muito
mais pé no chão e menos editorializado, o que é muito diferente da suposta ausência
de ponto de vista do filme. O
curioso nesta acusação é que grande parte da força do filme reside justamente
na forma como acontece o diálogo entre os dois já citados impulsos do cinema de
Bigelow, e que boa parte deste diálogo termine por incluir muitas observações
interessantes sobre a representação da guerra. De grande valor, por exemplo, é
a forma perto da ficção cientifica com que todo o mundo dos soldados nos é apresentado.
Com todos os detalhes realistas que Bigelow rodeia seu esquadrão anti-bomba, o
clima que tiramos do acampamento deles podia igualmente ser extraída de um sci-fi
sobre a colonização de um planeta distante. Há um estranhamento constante para
bem além do mero choque cultural presente ali. Este elemento de gênero serve como
uma falha no sistema que o filme aparentemente apresenta, o vício da guerra aos
poucos ganhando ares de narrativa de contágio cronenberguiana, uma metáfora de
filme de terror mais do que a de um filme de “tema importante”. Quando
vemos o sargento William James em meio a um ninho de bombas a imagem tem uma força
e apelo muito direto, mas tem também uma irrealidade muito mais próxima de um
videogame (na verdade com sua ênfase em tarefas sobre tramas e personagens pouco
móveis, The Hurt Locker poderia facilmente ser adaptado para um game).
Boa parte do valor do filme reside justamente em sugerir uma imagem que seja ao
mesmo tempo autêntica e virtual, o que parece de alguma forma fazer justiça a
experiência da ocupação iraquiana tanto para quem a acompanhou em primeira mão
como através das múltiplas mediações da mídia, internet, cinema etc. Chegar num
ponto de vista é mais do que ter um discurso bem ensaiado, afinal. Março
de 2010 editoria@revistacinetica.com.br
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