ensaios
Em movimento - identidades flexíveis e relações com o espaço
por Cléber Eduardo

Existe alguma relação possível entre cinco dos mais interessantes e expressivos filmes brasileiros de 2006? O que primeiro os aproxima, saliento, é dado extra-diegético: todos são realizados por realizadores surgidos entre a segunda metade dos anos 90 e a primeira dos anos 2000, um espaço histórico de aproximadamente uma década de constante renovação de diretores no Brasil, cujos filmes têm dialogado uns com os outros, sem constituir uma “cena” ou um “movimento”, mas respondendo ao seu momento histórico com afinidades de visão, com recorrências de “questões de personagens”, com diferentes modos de lidar com as mesmas motivações dramáticas. Tata Amaral chega ao terceiro longa-metragem com Antônia (foto acima), enquanto Cao Hamburger (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), José Eduardo Belmonte (A Concepção), Ricardo Elias (Os 12 Trabalhos) e Karim Aïnouz (O Céu de Suely) assinam a segunda direção de longas.

Cabe de cara anunciar que, no contrafluxo de algumas estratégias críticas formatadas pelo tratamento dos filmes como obras que se alimentam apenas da subjetividade singular de seus “autores”, sem relação com seu tempo, com sua sociedade e com outros filmes, proponho aqui o contrário. Não interessa nesse texto uma visão sobre as particularidades de cada filme, mas, exclusivamente, sobre os laços de relação que se podem ser visto a partir do conjunto deles – laços esses talvez menos perceptíveis para olhares isolacionistas (isolacionistas por costume, método ou acomodamento, não por limitação do olhar). Porém, para quem se dispõe a analisar o cinema não apenas pelo fragmento, mas também pela soma das partes, esses filmes emitem sinais de uma mentalidade de um grupo de realizadores na reação à nossa contemporaneidade.

Respondendo melhor a um questionamento recente, feito em um debate na Mostra de Tiradentes pelo professor e pesquisador César Guimarães, da UFMG, não acredito que esses filmes, somados, apenas representem um estado de coisas, uma realidade motivadora ou inspiradora, do qual são reflexões ou reflexões. Tanto quanto sintomas de uma circunstância histórica, social e política, eles também podem produzir valores e mentalidades – embora para isso, a rigor, precisassem circular pela sociedade, agindo sobre ela e não apenas sendo produto dela.

Além da aproximação pela “geração histórica” (não etária), os cinco filmes valorizam, uns mais, outros menos, a importância do trabalho para jovens personagens. Essa é uma questão direta em Antônia, O Céu de Suely e Os 12 Trabalhos, nos quais rapazes e moças, procurando melhorar as condições de suas vidas, procuram uma atividade remunerada (a música em shows, o bico de motoboy, a rifa do corpo). Todos precisam de dinheiro, como precisavam Lázaro Ramos em O Homem Que Copiava (Jorge Furtado) e Wagner Moura em Caminho das Nuvens (Vicente Amorim) – ambos redimidos, com intensidade diferentes, sob os braços do Cristo Redentor. A viabilização de um horizonte transformado pelo dinheiro, em última instância, é buscada por esses seres no limiar entre a descrença e a aposta.  Há uma busca neles, pela potência-resistência.

Mas essa resistência, longe de ser ao sistema, é à margem. Resiste-se para se esperar a hora da transição de fora para dentro (de novo, com diferenciações entre os filmes). Se a mudança não é buscada no trabalho fixo, à moda antiga, pode estar na flexibilização das atividades, como em A Concepção, filme mais sintonizado com a dinâmica do free-lancer, da terceirização circunstancial, da prestação de serviço, na qual personagens lidam com circunstâncias de necessária mobilidade. Ser múltiplo para se inserir e, ao mesmo tempo, não se manter prisioneiro. Esse é o caráter libertário possível em A Concepção, um filme que, em seus fluxos por identidades mutantes, equilibra-se, não sem queda, sobre a noção de “dentro” e “fora”, mas abolindo a dicotomia entre essas duas instâncias. Dentro e fora, agora, é estratégia. E talvez seja uma forma de assumir, para o cinema preocupado com seu tempo e com seu mundo, esse limiar entre uma coisa e outra, entre manifestar a rebeldia e a crítica, como se a visão do filme estivesse fora dele, e, ao mesmo tempo, como se o filme falasse de algo que dissesse a respeito a ele também (à sua maneira de estar no cinema e no mundo)

Dando continuidade (com maior esperança) a uma situação dramática recorrente nos últimos 12 anos, centrada na crise dos protagonistas com seus espaços, em suas rupturas (ou tentativas de) com os ambientes nos quais têm passado e na renovação de ciclos em um outro lugar, alguns dos mais interessantes filmes de 2006 apóiam-se em personagens caracterizados por essa crise e pela necessidade ou demanda de deslocamento. Com reinvenção ou ruptura, eles flexibilizam suas “identidades sociais”, seja com a mudança de nome (Hermila/Suely em O Céu de Suely e os “concepcionistas” liderados por X em A Concepção), de atividade (delinquente/motoboy/empreendedor em Os 12 Trabalhos), de condição no espaço (do lar ao exílio infantil em O Ano em Que Meus Saíram de Férias) e de papel social em suas comunidades e famílias (de mães/esposas a cantoras em Antônia).

Essas circunstância pautadas pelas mudanças, sejam mudanças de lugar ou no lugar, de modo a “eu” virar um “outro”, chamarei aqui de “Reciclo”,  termo tomado de empréstimo do título de um vídeo realizado em uma oficina coordenada por Joel Pizzini no Festival de Curtas de Atibaia. Reciclo porque estes filmes, como antes Terra Estrangeira/Walter Salles, Um Céu de Estrelas/Tata Amaral, Latitude Zero/Toni Venturi, Abril Despedaçado/Walter Salles, Bicho de 7 Cabeças/Lais Bodanski e O Homem que Copiava/Jorge Furtado, são mobilizados pelo desejo de recomeço, de novos zeros, que podem não ser de rupturas, mas conduzidos pela repetição de ciclos, por um imobilismo trajado de mobilidade, que coloca os personagens em uma possível dinâmica de constante mudança. Não há um final, mas reticências. 

O que será de Suely após sair de Iguatu, no filme de Aïnouz? Ou do garoto após a volta da mãe sem o pai, no de Hamburger? Ou do motoboy após a morte do tio, no de Elias? Ou dos concepcionistas após o fim da “seita”, no de Belmonte? Todos perdem algo ao longo da narrativa. Somente em Antônia, pelo final para cima, no palco, com a execução da criação musical das cantoras na trilha sonora, vemos futuro desenhado (e sobre isso escrevi um artigo específico). Nos demais, o novo ciclo estará fora do filme, na verdade é um outro filme no extracampo da narrativa, como sabe Roberto Moreira, que, depois de promover o desaparecimento da adolescente em Contra Todos (livrando-a de seu espaço), vai narrar o novo ciclo dela em seu próximo longa-metragem

Tomemos o cuidado para não juntar alhos e bugalhos. Não se pode igualar o reciclo de Hermila-Suely, do garoto Mauro e do motoboy Héracles. Em O Céu de Suely, quando Hermila parte ao final, ignoramos seu futuro. A mera partida não significa, necessariamente, que dias melhores virão – mesmo imponderabilidade de Terra Estrangeira, Um Céu de Estrelas e Latitude Zero. Quando ela segue no ônibus, com a moto do amante circunstancial atrás, a câmera fica na estrada, em Iguatu, sem acompanhá-la em sua aventura (ou projeto?). Não segui-la, nem seguir com ela, é fundamental. Nessa operação aparentemente simples, casual ou apenas de efeito estético, temos uma lógica rigorosa sobre o futuro, ali incerto – futuro onde a câmera não estará mais, pois deixa a personagem seguir seu caminho, emancipar-se do próprio olhar do filme.

A câmera de Hamburger, ao contrário, está com os personagens, quando, no último plano, a família se reintegra – mas agora aos pedaços, com uma perda a velar. Esse “velório”, em O Céu de Suely, é superado logo (a perda do pai do filho de Hermila, que não volta para Iguatu). Em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, será o tal extracampo narrativo. Se não podemos saber qual será o futuro desse garoto, na vida ao lado da mãe, sabemos ao menos que, entre 1970 e 1984 (quando chega aos estertores o regime militar), muito sangue ainda correu no Brasil – relação essa estreita, entre História de país e futuro de personagem, quando a mãe do protagonista é uma militante da resistência à ditadura. Portanto, quando os letreiros sobem ao final, o futuro, se não cola tanto assim indivíduos e país, também não os isola. Com toda sua capacidade de resistência e de superação, a criança, nos anos vindouros, não viabilizará o projeto utópico do pai morto, porque conhecemos o percurso do Brasil desde 1970 – percurso nada utópico.

Já em Os 12 Trabalhos, quando chega ao mar (como em Abril Despedaçado), o motoboy parece, em sua perda, aberto à futuras conquistas. O mar ali tem tanto o efeito poético, sobre o que se debruçou (em relação a outros filmes) a pesquisadora Lucia Nagib, mas também o respeito à lógica diegética. O mar tem um significado pertinente a quem vive sobre duas rodas entre os carros de São Paulo, ambiente do qual é antídoto por aproximar o homem da natureza e colocá-lo em outro ritmo, mas também significa a possibilidade de herdar o sonho abortado do tio – emancipando-se do “bico”, de certa condição social, o que, caso o tio não morresse, ironicamente, talvez fosse apenas um sonho sem garantias de realização. É a perda que abre portas. Mas temos garantias de que, aberta a porta, o futuro será cumprido? Não. Porém, ao lado de Antônia, o deslocamento, aqui, aponta para algo melhor. Talvez seja o início de uma alteração de olhar para essa dinâmica de crise com espaços e mudanças de lugar e de imagem.


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