Incuráveis, de Gustavo
Acioli (Brasil, 2005)
por Eduardo Valente
Estréia
corajosa
Existem dois lados a se considerar na escolha
do projeto de longa-metragem que marca a estréia no formato do
cineasta Gustavo Acioli. Por um lado, a precisão da escolha de
um filme que se passa quase todo no interior de um quarto e que
tem apenas dois personagens em cena – uma vez que Acioli foi premiado
num dos mais baixos e restritivos prêmios de baixo orçamento que
a Secretaria do Audiovisual organizou, esta escolha parece extremamente
sensata, e permitiu que o cineasta terminasse o projeto (não sem
sacrifícios é claro). Por outro lado, se simplifica aspectos de
produção, a opção dramatúrgica do filme (cuja matriz teatral marca
presença) implicou numa série considerável de desafios para o
diretor em aspectos relacionados à mise-en-scène e trabalho
com os atores: filmar apenas duas pessoas no interior de um quarto
durante hora e vinte de filme não é tarefa simples. Pois deste
desafio, Acioli também sai vencedor – ainda que sem nocaute.
Desde o elaborado primeiro plano do filme, Acioli
e o fotógrafo Lula Carvalho demonstram que não vão optar pela
saída mais fácil, seja pela filmagem em digital, seja por um estilo
mais direto e pouco cuidadoso com o enquadramento. Trata-se de
uma qualidade do filme, mas também de um risco, porque o rebuscamento
de movimentos, enquadramentos e trabalho com a luz pode se tornar
facilmente auto-centrado e distrativo. No entanto, ambos parecem
bastante conscientes deste perigo, e de maneira geral a câmera
trabalha essencialmente a favor do filme e dos atores. Há uma
densidade muito desejável nos escuros que o filme constrói, assim
como em seus jogos cromáticos, sem que isso se torne um tema.
O mesmo pode ser dito sobre a direção de arte que, sem ser absolutamente
naturalista, também não se perde em meio aos “badulaques”.
Com
estes dois aliados, cabe a Acioli jogar boa parte da força do
filme nos ombros largos de Fernando Eiras e Dira Paes, felizes
escolhas para seus personagens – ele, pela capacidade de transmitir
sem esforço muita inteligência, ironia, e um certo desespero;
ela, pela capacidade de parecer comum e sensual ao mesmo tempo,
como pede o personagem, e de transitar da ternura ao desprezo
com igual intimidade. São todos atributos mais do que necessários
para o jogo de poder e representação que tem lugar no filme entre
os dois personagens.
Mas é quando chegamos nesta palavrinha essencial
(personagens) que o filme de Acioli encontra seu calcanhar de
Aquiles. Depois de um começo altamente engajante (tanto o diálogo
no bar, quanto os primeiros momentos no quarto, até a primeira
trepada), o filme dá uma certa escorregada na sua teatralidade,
e os personagens deixam bem claro suas presenças mais como “arquétipos”
(masculino/feminino) do que como pessoas em cena. A princípio
isso não seria um problema por si, mas sim como o filme vai trabalhando
seu andamento, porque em diferentes momentos mais à frente ele
parece querer que nos engajemos no destino destes dois indivíduos,
mas a estas alturas já nos encontramos bastante distanciados deles
– mais preocupados com os conceitos filosóficos e de gênero que
estão em jogo do que com aquelas duas pessoas especificamente.
Disso resulta uma certa alternância de registros
(que vai das falas escritas ao tom dos atores) que cria alguns
obstáculos entre o espectador e o que está na tela. E com isso,
o filme fica mais por conta de momentos de força (de novo: de
atores, dos diálogos, da câmera), do que da consistência do seu
todo. Não que, voltando ao começo, fosse fácil dar conta de solucionar
este todo tão peculiar num primeiro filme – e, neste sentido,
estas partes mais agradam do que o todo decepciona. E fica a curiosidade
de ver o que Acioli, sempre um diretor de atores e de roteiros,
pode nos mostrar a seguir.
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