in loco - cobertura do Festival do Rio

Independentes americanos, super-produção egípcia
por Paulo Santos Lima

A Cada Manhã (Come Early Morning), de Joey Lauren Adams (EUA, 2006) - Expectativa
Admiração Mútua (Mutual Appreciation), de Andrew Bujalski (EUA, 2005) - Expectativa

O cinema independente norte-americano, hoje, é mais um gênero do que um modo e de fazer cinema e seu resultado. Um nome repetido à exaustão no um tanto equivocado Sundance Festival, evento mestre em nomear tolices travestidas de alta arte cinematográfica. Um Martin Scorsese e um Tim Burton, nomes mais presentes no Oscar do que no Sundance, falam mais contundentemente sobre o mundo no qual vivem com seus filmes do que um engodo de US$ 6 milhões como A Cada Manhã, filme que foi comentado no último Sundance.

Claro, temos aqui um elenco elogiável passeando por um tema caro à tradição indie: a classe média, retratada de forma “naturalista” (para o cinema americano) e geralmente servindo de parte de um sintoma geral. Aqui, diferentemente de Paul Thomas Anderson e Todd Solondz, temos um Gente como a Gente com mais sujeira e sem a imagem de ruptura da célula e sim a construção de um núcleo familiar. Para tal, o roteiro escrito pela atriz e diretora Joey Lauren Adams, neste que é seu longa de estréia, trafegará num horrendo conservadorismo, condenando a postura de Lucy (Ashley Judd), que enche a cara para deitar com o primeiro que encontra no balcão do bar. Ela conhece um romântico que tenta consertá-la, mas a causa está anunciada desde o início: o trauma pela morte prematura da mãe e falta de manejo paterno. A primeira sequência diz muito sobre o olhar de Adams: de calcinha (jamais pelada, porque estamos aqui num filme que privilegia a “dignidade” de Ashley Judd), Lucy saindo de fininho do quarto ordinário de motel, imagem toda apresentada com câmera na mão e cortes perceptíveis. A seguir, essa câmera meio trépida sumirá e os cortes serão aveludados. Um abismo separa A Cada Manhã dos Tarantino, Wes Anderson e Edward Burns (esse sumiu do circuito brasileiro, mesmo tendo feito o extraordinário Os Irmãos McMullen).

Mais próximo desses grandes do cinema está Andrew Bujalski com seu Admiração Mútua (mais na intenção, é fato – ainda que o resultado não seja dos piores). Muito se diz da proximidade desse filme com os de John Cassavetes. De fato há certo parentesco com a captação do momento encenado, deixando rebarbas e mutilando o desenvolvimento da trama. Mas falta a mise-en-scène casseveteana, assim como uma impressão de improviso, que aqui, neste Admiração Mútua, fica apenas na voz, nunca no ator em cena. E por que será que eu senti que o filme se aproxima mais do Jim Jarmusch de Estranhos no Paraíso do que do Cassavetes de Shadows e, um pouco, de Faces? Porque é a fotografia o que caracteriza o trabalho de Bujalski, num preto-e-branco sujo, granulado e deixando o borrado do preto invadir o branco, típico do primeiro cinema de Jarmusch. Isso e as atuações também, que estão mais próximas de um Down by Law do que de um Faces.

As referências não são um bolo de noiva. Assumi esse procedimento porque é claro, no caso desse diretor, que sua cinefilia chega à tela em estado bruto, quase como uma injeção na veia. Mas a bagagem de Bujalski não o livra de certos problemas. Ainda que o tema seja banal, está lá um retrato que não pretende um julgamento superior sobre alguns jovens que simplesmente vivem, equilibrando-se na corda bamba das banalidades cotidianas (outro dado que se faz marca chancelada no indie). Mas o filme acontece apenas quando os atores acontecem, pois é no verbo e na expressividade que a câmera toma atenção. Aí temos Justin Rice, soberbo, no papel de Alan, músico que tenta um lugar ao sol, e, às vezes, Rachel Clift, que faz Ellie, namorada de Lawrence (Bujalski) que percebe ter uma atração pelo amigo do namorado. Um tema que frequenta as comédias românticas orquestradas pelos grandes estúdios. E um apreço pela performance do elenco que, pelo visto aqui, não seria loucura considerar como a peça de interseção para toda a produção norte-americana contemporânea. Ou seria, sim, uma insanidade, o que é uma grande sorte.

* * *

Edifício Yacoubian (Omaret Yakobean), de Marwan Hamed (Egito, 2005) – Expectativa

Uma sinopse pode destruir um dia. Sobretudo se ela, na sua imprecisão, der contornos atraentes a filmes que, cinematograficamente, não merecem as horas gastas num festival que às vezes exige uma onipresença para darmos conta de sua grade. Caso do egípcio Edifício Yacoubian – que, pior, dura 165 minutos.

A sinopse não mente, mas na sua leitura temos a impressão que o tal edifício será um espaço de experiências. O centro do filme está na relação (sobretudo verbal) entre personagens, não necessariamente onde eles vivem, transitam, vivem. Não faria diferença, então, se o prédio, a loja de carros, as ruas do Cairo, etc fossem meros cenários. O filme tenta um painel humano amplo, indo do aristocrata decadente e galanteador às mocinhas românticas e interesseiras, dos políticos corruptos ao rapaz pobre que se converte ao islamismo e é torturado pela polícia, do jornalista gay que sustenta um militar casado ao dono de uma loja que bolina suas funcionárias. Fica claro, logo no início, que o dinheiro é uma questão para todos ali, pois a miséria germinada pelo capitalismo é um dos assombros no Egito atual (segundo o filme). O outro é o da contemporaneidade estar arruinando os valores que faziam do Egito um grande país, que faziam do Cairo uma cidade melhor que Paris, sem miséria, sem tristezas etc (segundo o filme, novamente).

Se já é problemático esse moralismo saudosista (ou saudosismo moralista), que mais olha pra trás do que para o seu momento, o pior está na dramaturgia e mise-en-scène, pois tudo isso sai da boca dos atores, e muito pouco das imagens. O resultado tem algo de Bollywood, mas sem os espetáculos cafonas das seqüências musicais. Câmera mostra edifício por fora, às vezes, e nos coloca dentro dele, no elevador, em algum meio corredor e já dentro dos apartamentos, onde atores se esgrimam ou se amam – verbalmente sobretudo. Há espaço para uma chanchada mais ousadinha, inclusive com alguns momentos mais espetaculares, como quando o jovem ingresso no Jihad faz treinamento para, tempo depois, atacar a polícia que o seviciou. Mas, até aí, nada além do que as telenovelas espetaculosas da Globo já vêm fazendo há tempos.


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