Dias
de Glória (Indigènes), de Rachid Bouchareb (França/Argélia,
2006) por Eduardo Valente
A volta dos mortos-vivos Todo filme
de guerra tem um quê de cortejo fúnebre, isso é inegável – ainda mais quando se
trata de um filme de guerra de época, onde em última instância (como diria Millôr),
todo mundo ali já morreu, mesmo os que estão vivos no final do filme. No entanto,
sem negar seu caráter funéreo radical (muitos planos se dedicam ao recolhimento
de corpos no campo de batalha, algo nem tão comum assim), Dias de Glória
é um filme menos sobre a morte em si do que sobre uma espécie de morte em vida
a que estariam relegados os combatentes africanos das colônias francesas na Segunda
Guerra. Não por acaso o filme termina após uma cena num cemitério, onde o único
vivo que vemos talvez seja o que mais morto ficou após o final da guerra (como
podemos ver na cena seguinte, em seu micro-apartamento). Tratar
dessa condição do imigrante africano na França, no fundo, é o que deseja fazer
Dias de Glória – e, não por acaso, tanto seu diretor quanto seus quatros
astros principais (a palavra “astro” se justifica, pelo menos dentro do contexto
francês) são nascidos na França de pais imigrantes africanos com idade muito próxima
à dos personagens do filme. Sabendo disso, para falar do filme podemos tomar dois
caminhos: analisar apenas a obra em si, como se dá na tela; ou tomá-lo para além
do simples produto audiovisual e adentrar pelas várias implicações que este possui.
Qualquer uma das duas opções, se tomadas como caminhos únicos e excludentes, me
parecem fadadas a fracassar, uma vez que o filme se mostra o tempo todo ciente
de suas duas naturezas – a de obra cinematográfica e a de gesto político. Todas
as dimensões de Indigènes são fortemente políticas (a começar pelo título,
cujo sentido muito específico da língua francesa se preferiu traduzir por um internacional
Days of Glory, que também uma citação política forte, sendo um verso da
Marselhesa), como não poderia deixar de ser para quem decide fazer, em 2006, uma
superprodução de guerra (gênero tradicionalmente afeito ao discurso patriótico)
toda ela focada sobre os soldados muçulmanos das colônias africanas que lutaram
para libertar a França dos alemães (com boa parte do filme falado em árabe e não
em francês). Se é quase chover no molhado falar sobre o que significaria um tal
filme dentro da atual onda anti-imigrantes na Europa Ocidental, reforçada ainda
mais no seu componente racista e preconceituoso a partir da “guerra contra o terror”
islâmico, parece mais interessante analisar algumas especificidades deste filme
que o fazem especialmente impressionante – e aí é que a dimensão política começa
a se misturar com a obra em si. Tradicionalmente, o filme
de guerra se dá no jogo entre dois pólos bem distintos: o do drama humano (individual
ou de um pequeno grupo) e o do drama coletivo-épico. Pois Dias de Glória
dá conta destes dois aspectos com muita consciência do que veio antes dele e de
todas as armadilhas do formato. Quando ao segundo aspecto, o filme nunca nega
um interesse pelo “espetáculo da guerra”, menos no que se encena e mais na maneira
como se enquadra e aciona seus mecanismos. São constantes nas (poucas) cenas de
batalha o recuo para o plano geral, onde se tenta mostrar acima de tudo a movimentação
humana dentro de uma determinada paisagem (não por acaso o filme tem suas partes
mercadas por um plano aéreo-geográfico). Afinal, ter a noção do que significa
o deslocamento África-Itália-regiões da França dentro do filme é essencial para
compreender o drama destes personagens em sua mudança de terreno (a cena em que
dois soldados cheiram – e estranham – a terra da França exemplifica a importância
do tema no filme). Do
lado do drama humano, Rachid Bouchareb simplesmente escala pela primeira vez no
mesmo filme os quatro principais atores franceses de origem africana hoje em atividade.
Cada um deles possui uma persona bem diferente, com as quais acabam jogando seus
personagens: Jamel Debbouze é um mega-astro cômico da TV (conhecido por aqui a
partir de papéis menores e especiais em Amèlie Poulain e Asterix &
Cleópatra), que não só é co-produtor do filme como é de fato o nome que deu
“bancabilidade” ao projeto; Samy Naceri também é ator de acento cômico, mas com
uma presença mais corporal em cena, o que tem levado ele a filmes policiais (é
astro de toda a série Taxi); Roschdy Zem é o homem de traços árabes que
as mulheres adoram, com uma carreira em filmes de diretores mais “autorais” (Chereau,
Beauvois, Miller, Techiné), posições políticas conhecidas e que estreou ele mesmo
na direção este ano; e finalmente Sami Bouajila é o rosto mais novo, vibrante,
enérgico (que exerceu acima de tudo em filmes de cineastas com este perfil, como
Arnaud Despleschin e Karim Dridi). Se os quatro são uma atração à parte para platéias
francesas, mesmo quem não os conheça precisa se impressionar com suas presenças
em cena, especialmente com a força de seus olhares. Não são só grandes atores:
claramente são astros atuando num projeto no qual acreditam com todas as forças. Não
nos enganemos, é claro: tanto na escalação do elenco como na formatação do projeto
(roteiro/filme), Bouchareb demonstra claro interesse em realizar um produto comercialmente
atraente. No entanto, se ele saiu para fazer um autêntico “filme de guerra”, com
tudo que isso implica (figurantes, explosões, etc), foi porque para ele essa história
só faria sentido se fosse contada para muita gente, se atingisse franceses de
todo tipo de classe, região, raça e posição política. Alguns reclamam do filme
uma adesão ao sistema cinematográfico, como a que os personagens fariam ao exército
francês. Só que a crítica parece frágil uma vez que prefere ignorar que a adesão
dos personagens nunca se dá sem dor (lembremos a cena da igreja onde eles falam
sobre a “pacificação”) ou sem conseqüências futuras (o estado de servidão voluntária
de Said, o esquecimento histórico encarnado na frase “os soldados franceses libertaram
a Alsácia”). Por outro lado, fazer um filme de “resistência”
no sentido estético, um filme miúra (como eram os outros dele, aliás) seria decretar
de saída o fracasso do fim maior que o filme tem para seus realizadores. Portanto,
criticar no filme um classicismo exagerado seria simplesmente não entender nada
sobre suas motivações: que ele é um filme clássico em todos os sentidos (personagens
arquetípicos, narrativa acima dos personagens, etc), isso é um dado pré-filme.
O que Bouchareb queria era fazer dentro dessas condições um filme “vivo” – no
sentido que deu ao termo Alain Resnais, em recente entrevista onde dizia que o
que o interessa nos filmes não é saber se eles são de arte, comerciais, etc, e
sim se são vivos ou mortos. E nos olhos de cada um de seus quatro protagonistas,
Dias de Glória queima com energia viva do início ao fim.
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