ensaios - retrospectiva 2008
A captura da imagem por
Lila Foster A
imagem mecânica tem como natureza a captura. Registrar, através de uma câmera,
a vida, a natureza, o mundo, a realidade – a concretude – insere um objeto em
uma rede de significação diversa do original. O objeto representado, fruto de
uma ação, divide-se em dois: o original e o seu duplo. Capturar este movimento
significa perpetuar o que foi recortado por um olhar específico, mas não sem corrompê-lo.
Se essas questões de origem se diluem e se tornam mais complexas através do desenvolvimento
do cinema em suas diversas matizes (técnica, econômica, estética e política),
a imagem do índio brasileiro talvez seja um exemplo de como o “dilema original”
se mantém como problemática. Quando evocamos o dilema
ontológico da imagem mecânica trazemos para o jogo uma equação simples: o domínio
da técnica é também um domínio do poder de captura e, consequentemente, da representação.
Diante do óbvio predomínio de uma imagem engendrada e perpetuada como alteridade,
o repertório visual sobre a questão indígena (aqui incluímos filmes de expedições,
fotos em jornais, cobertura jornalística, documentário e ficções) é a marca inevitável
da desapropriação dos povos indígenas dos seus próprios meios de vida. Isso não
significa que toda e qualquer representação do índio seja uma desapropriação,
mas, se a imagem captada mecanicamente existe, a desapropriação já aconteceu;
foi rompida a relação do índio com a sua origem e inicia-se um movimento de desterritorialização,
transformação e descaracterização.
Alguns títulos
lançados comercialmente em 2008 trazem povos indígenas como questão. Filmes como
Serras da Desordem (Andrea Tonacci, 2006), Terra Vermelha (Marco
Bechis, 2008) e os curtas-metragens produzidos pelos povos Kiukuro, Huni Kuî e
Panará, lançados na caixa de DVD Cineastas Indígenas, operam dentro de
um acúmulo de um repertório visual acerca da imagem indígena. Semelhantes em suas
questões, mas diferentes na forma de mobilização, todos esses filmes trazem a
questão indígena na sua complexidade articulando memória, o curso da história
e as possibilidades do cinema como manifestação política. Em todos os casos, a
imagem é considerada menos por uma relação engendrada somente pela alteridade,
mas pela compreensão da imagem como potência e seu poder de reinvenção. Isso acontece
principalmente porque as regras desiguais entre brancos e índios não servem mais
diante das conquistas políticas dos povos indígenas durante as décadas: vinculada
diretamente à reconquista de suas terras originais, essa é uma batalha contínua
que se trava ainda nos dias atuais. Este movimento é a matéria dos filmes citados:
índios de diversas etnias, personagens da ficção e do documentário, tentam retomar
a posse não somente de suas terras, mas também da sua vida em comunidade, da capacidade
de passar adiante os seus mitos, lendas e modos de vida. A questão é retomar a
sua dignidade como sujeitos históricos e não objetos de uma história que não lhes
pertence. Cada filme partirá de princípios distintos, mas todos permitem entrever
uma necessidade de uma outra imagem, pelo menos, uma imagem mais complexa, em
busca da compreensão do outro. Em
Serras da Desordem, a história do índio Carapiru, descolado da sua tribo
e família após um ataque de fazendeiros, não é somente uma história de vida, mas
a história de sua imagem e da sua apropriação. A encenação-documental do cotidiano
dos índios em família nos primeiros minutos do filme, que reporta a um espaço
localizado porém atemporal, é destruída pelo encontro do índio Carapirú e o trem:
uma terra forçosamente demarcada pelo progresso. A representação do momento original
não sobrevive muito tempo sem ser invadida pelo triunfo do progresso e pela desestabilização,
que será constitutiva do próprio filme, entre os tempos e os registros. Se o ataque
violento dos fazendeiros será responsável pelo rompimento de Carapirú com a sua
família, a imagem do progresso no “institucional-videoclipe” encerra definitivamente
qualquer possibilidade de uma imagem “pura”, não corrompida. Isso,
na verdade, pouco importa para o filme, porque não existe o interesse em se pleitear
uma pureza para atingir a verdade. Por isso, o preâmbulo idílico, o Brasil dos
nativos, é destruído pelas imagens de afirmação de um outro Brasil: o progresso
das grandes obras, das novas entradas pelo norte do país, as belezas naturais,
samba e carnaval. Entrecortadas pelos vestígios da violência, essas imagens, de
tão positivas e afirmativas, assumem uma estatura assombrosa. De tão familiares
elas se tornam estranhas porque percebemos que é somente através delas que o Brasil
Grande Potente e Bom se sustenta. Quando volta o silêncio, Carapirú corre, fugindo
ou indo ao encontro de algo que ainda não sabemos. O registro no qual nos dispomos
diante do filme já não é mais o mesmo. Serras
da Desordem será marcado por essa flutuação e deslizamento dos sentidos: o
movimento é mais importante do que o engessamento de certezas. Por isso, em muitos
momentos, pode ser definido como um filme de montagem, pois é através do contato
ou choque entre as imagens que as idéias e os sentimentos se formam. A recorrente
apropriação de imagens de arquivos das mais diversas fontes sintoniza o percurso
de Carapirú, de encontros e desencontros, com a história imagética do próprio
país. A apropriação coloca tudo em relação, mas não relativiza os significados,
pois movimento não se reveste de desencanto puro e simples, mesmo que exista sim
um sentido de perda ao final do filme. Essa perda, expressa muitas vezes pelo
semblante de Carapirú, faz parte de um processo violento e é um fato, portanto,
não relativizável. Serras da Desordem é, antes de tudo, um filme sobre
Carapirú e a sua fantástica história real: a perda da família, a vacância em solidão
por dez anos, a família de agricultores que o acolhe (o momento mais lírico do
filme), a ida para Brasília com o sertanista Sydney Possuelo, o reencontro inusitado
com o seu filho e sua tribo. No campo da imagem, o que fica como sensação ao final
do filme é que nós circulamos em um terreno sem certezas, mas com convicções.
É fruto também de uma convicção Terra Vermelha, de
Marco Becchis. Predomina nessa produção ítalo-brasileira o tom do discurso, ou
seja, existe uma tomada de posição clara em relação à batalha dos índios Guarani-Kayowá.
Isso é positivo, principalmente, quando, aliada a essa tomada de posição, a abordagem
não idealiza os índios. É um certo desespero que permeia a vida desse grupo à
margem do mundo dos brancos, mas totalmente inseridos neste mesmo mundo, só que
como marginais, vivendo miseravelmente de pequenos trabalhos, como, por exemplo,
posar para turistas: a imagem ideal para uma foto. O suicídio de duas adolescentes
da tribo, com seus respectivos celulares, significa não só a marginalização, mas
também um conflito dentro da própria comunidade indígena. A tradição parece ser
extremamente arbitrária quando eles não conseguem nem sequer garantir a sua própria
subsistência. Mas
será a tradição e a crença nos espíritos que faz com que eles tentem retornar
à terra de seus ancestrais, agora pertencente a um fazendeiro da região. Instalados
ao lado da cerca, mais uma vez um limite construído pelo homem branco, a relação
de desconfiança e atração entre índios e brancos é o que marca o tom do desenvolvimento
do filme. Seja o constante assédio de Dimas para que os índios trabalhem na colheita
de cana, na tensão sexual entre o índio e a filha do fazendeiro e a troca de olhares
entre o fazendeiro e o cacique da tribo, um reconhecimento do poder de ambos na
defesa de interesses distintos. O filme revelará sua força no contato muito próximo
com o universo desses índios Guarani-Kayowás, alcançado principalmente pela presença
do atores indígenas. O universo cultural dos mitos e lendas sobrevive mesmo nas
condições mais adversas. Quem vai incorporar este conflito será o jovem índio,
atraído pelo mundo dos brancos, mas sem abrir mão da sua inclinação para ser pajé.
Existe uma clara recusa em compactuar com uma imagem idealizada do índio, sem
desejos, falhas e conflitos. Na medida em que a tensão entre
o acampamento de índios e o fazendeiro se acentua, o filme muda de registro e
assume uma feição quase fabular. Porque, independente da força de resistência
e da violência do poder constituído dos grandes proprietários de terra e a polícia,
uma realidade, importa para o filme representar a possibilidade de luta e resistência
dos Guarani-Kayowás. O personagem do fazendeiro se distancia muito da intolerância
e violência dos grandes proprietários de terra assumindo uma feição quase surreal.
E a luta ritual no final, com os índios ocupando as terras com pinturas e gritos
de guerra, é a afirmação do discurso da luta e da resistência. O diretor assume
e leva até o fim a necessidade de denúncia e de afirmação de uma luta. A
afirmação dos filmes produzidos pelo coletivo dos cineastas indígenas vai em outra
direção. Resultado de uma relação de anos com o projeto de oficinas Vídeo nas
Aldeias, o que mais surpreende é o ponto de partida dos filmes. A sua função inicial
não é reverter um déficit, como se a imagem feita pelos próprios indígenas fosse,
por si só, resolver um histórico de desapropriação. Os índios se apropriam dos
instrumentos dos brancos (e isso inclusive é um conflito vivido pelos produtores
dentro das tribos) como instrumento de manutenção da cultura oral e formação de
um repertório visual, como uma cinemateca indígena para as gerações futuras. A
funcionalidade, a necessidade do registro, não diminui em nada a criação artística
e a consolidação de uma linguagem própria. Diante da perda
dos cantos e do esquecimento de diversas lendas, muitos desses filmes se centram
na recriação dos mitos e das lendas como uma fonte para as futuras gerações. Fonte
de conhecimento, eles não aderem ao didatismo. Esse é o caso do curta-metragem
Cheiro de Pequi (Imbé Gikegü, 2006) da comunidade Kuikuro. A colheita do
pequi será o mote para a narração da índia Tapualu sobre lenda de desejo e traição
que deu origem à árvore do Pequi. A recriação ficcional se mistura à imagem cotidiana
de trabalho e da vida em comunidade. Na verdade, a separação ou classificação
entre os registros de representação não faz nenhum sentido, pois o que se busca
é registrar e reconstituir a continuidade da lenda, inseparável do universo cultural
em qualquer tempo. E não há nada que evoque uma pureza ou primitivismo, pois o
roteiro articula os diferentes tempos e tudo é extremamente bem filmado. Não existe,
por parte do projeto, nenhum interesse numa imagem bruta, primitiva, mas sim,
a recriação da lenda. Os Cantos do Cipó (Huni Meka,
2006), do coletivo Huni Kui, registra o trabalho dos índios na captação dos cantos
nas vozes dos mais velhos para a produção de um CD e toda a preparação para os
rituais de “miração”. O ritual no tempo presente, o trabalho cotidiano, a dimensão
fantástica do mito e a importância simbólica e cultural dos vídeos fortalece a
continuidade entre o passado, presente e o futuro. Também do coletivo Huni Kui
é o curta Já me Transformei em Imagem (2008). O filme começa com o cacique
sentado na frente de uma árvore enorme e sua primeira fala é um chamado: “Prestem
atenção, olhem para mim! Não distraia os olhos e nem fiquem falando quando eu
falo!”. Segue-se a narrativa histórica do seu povo dividida em tempos: tempo
das malocas, tempo das correrias, tempo do cativeiro e tempo dos direitos. A trajetória
da vida em comunidade antes do contato com os brancos, a perseguição violenta
sofrida pelos índios com o início da exploração dos seringais, o encarceramento
como mão de obra escrava em fazenda e a reconquista dos direitos em 1970 vão sendo
narradas pelos mais velhos, sempre acompanhados de perguntas dos mais novos.
A história é contada a partir dos efeitos e conseqüências vividas pela comunidade,
desde a introdução de ferramentas como o machado, as disputas com outros índios,
a separação das famílias e as marcas físicas de um tempo em que os índios eram
propriedades dos brancos. Todos esses tempos são acompanhados de imagens de arquivos,
filmes e fotos que testemunham cada um dos períodos. A imagem também se transforma,
vai de um filme etnográfico da vida em comunidade, passa pela exploração dos seringais,
os índios vestidos e com armas como capatazes até as imagens televisivas das assembléias,
manifestações e o engajamento a causa dos seringueiros liderados por Chico Mendes.
O novo tempo é o de retorno às terras, da formação de lideranças indígenas, de
escolas para ensinar a própria língua; e da transformação em imagem para a construção
do tempo futuro. Já me Transformei em Imagem sintetiza a mudança de perspectiva
empreendida pelos vídeos produzidos pelos coletivos indígenas, no sentido em que
a apropriação se inverte para o próprio fortalecimento e, principalmente, numa
recusa de uma imagem de enfraquecimento. Abril de
2009 editoria@revistacinetica.com.br
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