Inesquecível, de Paulo Sérgio Almeida (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente

Aposta arriscada

Desde o começo, Inesquecível nos dá pistas de seus autênticos interesses: a partir de enquadramentos que constantemente apelam para a mediação de espelhos e telas, o que a princípio pode parecer tão somente um banal romance em forma de triângulo amoroso logo revelará uma estrutura metalinguística intrincada, onde um dos protagonistas sai de cena bastante cedo, deixando para trás uma presença fantasmática através das imagens de um filme. O filme nos remete assim tanto ao tema do duplo quanto à importância central do olhar: ambos elementos típicos de um cinema metalinguístico, que joga com uma projeção na tela do ato voyeurístico do espectador.

Só que, assim como a paródia, o cinema referencial é um jogo arriscado: tanto numa quanto no outro, se o diretor não tiver um domínio apurado do timing cinematográfico ele perde o engajamento do espectador, que não pode contar plenamente com os elementos tradicionais de identificação, desvendados constantemente pela referência à manufatura cinematográfica e à natureza ilusionista da narrativa que se desenrola a seus olhos. E é aí que o desafio nada pequeno a que se dedica Paulo Sérgio Almeida revela sua enorme dificuldade: longe de ser desinteressante, o filme, ao mesmo tempo que não consegue nos enredar de todo nas tramas de sua metalinguagem, também não toca o espectador comum com uma comunicabilidade plena – habitando assim um incômodo meio termo.

Um dos principais problemas que Almeida encontra é a solução cênica pouco convincente de alguns dos seus momentos mais cruciais, onde talvez o mais gritante exemplo seja a seqüência do flashback na cachoeira, momento central de cruzamento entre histórias e tempos do filme, que se perde numa decupagem um tanto nervosa e incerta, onde a força dramática do momento termina bastante diluída. A partir de pequenos momentos como este, vai se impondo a sensação de que o filme não consegue nos puxar de todo para as regras do jogo que propõe.

De fato, ao se colocar na fina fronteira entre tragédia e melodrama, Inesquecível exige um domínio cênico e rítmico que muito poucos cineastas possuem no cinema contemporâneo – e certamente o que mais vem à mente enquanto o assistimos é mesmo Pedro Almodóvar. Assim como em vários momentos de Almodóvar, Almeida deixa bem claro ao longo do seu filme o profundo amor que nutre pela linguagem do cinema clássico, em especial o cinema de gêneros. De fato, as cenas do filme dentro do filme em Inesquecível talvez sejam as mais bem sucedidas: livre das amarras de qualquer naturalismo, Almeida chega mais perto do pastiche e da homenagem, e lá se sai bastante bem. No entanto, sua homenagem não consegue se unir com naturalidade ao filme contemporâneo que deseja fazer – e o resultado é que Duelo de Amor (o filme dentro do filme) tem uma verdade na sua falsidade que Inesquecível não chega a atingir.

Como já dissemos acima, parte deste problema reside também nos atores – nem particularmente em algum deles ou seus desempenhos, mas na química entre eles. De fato, dos três “casais” em cena, o que mais acreditamos é o formado por Ciocler e Murilo Benício: desde a primeira cena em que eles se encontram, acreditamos plenamente naquela amizade antiga, de segredos e cumplicidades escondidas em cada uso de nomes como “menino” ou “moleque” entre eles. Na relação entre Guilhermina Guinle e Benício, se não nos envolvemos de todo, isso é menos grave – já que tudo em torno do universo do personagem de Benício tem algo de falso, de exagerado, de posado, e isso funciona dentro do filme (sendo que Benício como um todo está bastante adequado ao filme – já que, assim como em Pé na Jaca, parece ser entendido que se trata de um ator que funciona muito melhor no exagero).

No entanto, e aí sim o filme se ressente, não conseguimos em nenhum momento acreditar na principal história de amor: aquela entre Guinle e Ciocler. Para todo o jogo que o filme propõe seria essencial que as primeiras seqüências (o encontro entre os dois personagens na Argentina) nos atingissem com a força de um furacão, que tivessem uma dimensão quase extra-corpórea de um encontro de almas. No entanto, seja pela ausência de química entre os dois atores, seja pela filmagem já bastante incerta entre um determinado naturalismo inicial em que o espectador se identifique ou uma “hiper-realidade” com algo de onírico, o fato é que o que temos na tela remete tão somente a um banal encontro casual e sexual entre dois personagens pelos quais não nutrimos grande interesse naquele momento. Ela, com sua presença de diva (e o filme até consegue nos vender esta imagem); ele, com seu physique e presença de “cara gente boa e comum”: há uma diferença de presenças de tela entre os dois que sempre nos parece indicar que não habitam o mesmo chão. Daí, não conseguirmos acreditar na sua conexão, e conseqüentemente na sua tragédia posterior.

Por isso tudo é que não se pode dizer que Inesquecível atinja o resultado a que claramente aspira – mas devemos ao menos dizer que ele aspira alto, e isso deve ser ressaltado num cinema que muitas vezes arrisca muito pouco, seja no seu cinema mais “comercial”, seja nos seus “autores”.

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