Império
dos Sonhos (Inland Empire), de David Lynch (França/Polônia/EUA,
2006) por Francis Vogner dos Reis
Estrada
para a perdição
Talvez seja Império dos Sonhos
o filme mais perturbador de David Lynch. Sendo este o terceiro filme da trilogia
de Lynch sobre Hollywood, é necessário entender o que seria Hollywood para o diretor.
Um lugar de imagens falsas? Uma terra em que a verdade só pode vir à tona a partir
de experiências de imagens puras? Ou seria um simulacro da vida? O diretor não
vai se guiar pela busca de significados, analogias e alegorias. Para entender
os filmes do diretor muitos vão tentar filiá-lo diretamente a “escolas” e movimentos
modernos como surrealismo e expressionismo. Erro crasso: a pecha de surrealista
não se adequa a Lynch porque seu cinema nunca vai aderir sem reservas ao inconsciente
e aos sonhos, mas vai criar fissuras neles, vai colocá-los em perspectiva, vai
borrar a fronteira entre o que seria sonho, realidade, consciente e inconsciente.
O universo de Império dos Sonhos não vai procurar uma imagem da lógica
do ilógico, não vai aderir ao “mundo interior” dos personagens, mas vai se perguntar
se a imagem “moderna” (ou seja, uma imagem aberta e relativa em alguns aspectos,
e fabricada e genérica em outros), permite ainda que as imagens existam como universo
autônomo e complementar disso que chamamos de “realidade” – um termo às vezes
tão aviltado. Para
conseguir isso, durante quase três horas o filme submete a atriz Laura Dern (e
o próprio público) a uma experiência, como princípio sincero de verdade – uma
verdade que não se pauta por idéias e nem por uma busca de um núcleo duro da realidade,
mas uma verdade que se basta a partir de uma sucessão de choques de percepção.
É a partir desse pressuposto que, pela primeira vez em sua carreira de longa-metragem,
ele vai usar uma câmera digital e tirar dela tudo que é possível em termos de
apreensão visual: muitas vezes a câmera encontra o breu, o escuro – o lugar onde
nascem as imagens; ou a câmera vai buscar os primeiros planos de Laura Dern,
fazendo um radical ensaio de expressões. Laura Dern é uma
atriz e, logicamente, tem como função “viver outras pessoas”, e isso consiste
em construir pra si outros universos dentro de seu próprio mundo. Por isso, Lynch
faz um filme dos primeiros planos. Ele vai buscar dentro desses primeiros planos
essa gênese do personagem, assim como Persona de Ingmar Bergman. Mas lembremos
que Lynch não se limita a lidar com um repertório como comentário, citação ou
referência como via de legitimação de seu universo dentro da história da arte,
dentro da história do cinema. Para ele, buscar a gênese do personagem é um movimento
obrigatório de deslocamento de um mundo para outro. Mas como o cinema de Lynch
não é um cinema de fronteiras, mas da dissolução, da confusão e da crise delas,
esse trânsito da atriz vai ser descontrolado. Mesmo dentro
da radicalidade da diegese de A Estrada Perdida e Mullholland Drive,
tínhamos discernido as viradas, os personagens e a metamorfose deles. Em Império
dos Sonhos, Lynch implode o mínimo de estrutura de seus filmes anteriores.
Temos como que um monstro sem esqueleto: uma personagem perdida em meio à suas
personas. Essa é uma versão hardcore de Persona em que o contraplano é
o espelho deformado do plano, e não temos duas atrizes como em Bergman, mas uma
só; não temos duas personagens, mas várias. No
início, temos um filme e uma atriz que vai atuar nele. Mais tarde, ficamos sabendo
que este filme não foi finalizado, algo de horrível aconteceu. Como em Videodrome
de David Cronemberg e Cigarrete Burns de John Carpenter, é uma obra
de ficção (um filme, mais precisamente) que causou efeitos devastadores para além
dele; em suma, temos um filme proibido que perigosamente vai interferir na realidade.
Só que no trabalho para a TV de Carpenter e no filme de Cronenberg existe essa
ameaça que é de certo modo uma realidade autônoma; já em Império dos Sonhos
ouvimos falar do filme e de certa maneira parece que estamos dentro dele e que
suas ressônancias o invadem por completo. Já não existe mais o filme dentro do
filme como um mundo à parte que contamina este, já não existe uma divisão, esses
universos não são mais distintos. Existe um filme que não foi finalizado (ou seja,
um filme que não existe), mas que causa efeitos: o tal filme maldito passa a ser
este mesmo a que estamos vendo. Um desejo de imagem toma forma e se transforma
na obra a que assistimos. É um caso de possessão. Wes Craven já havia preconizado
isso em Um Novo Pesadelo-O Retorno de Freddy, mas David Lynch não se contenta
em tornar esse princípio discernível e mergulha na perdição de seu próprio filme.
É uma experiência que submete a todos. Outubro de
2007 editoria@revistacinetica.com.br
|