O Plano Perfeito (Inside Man), de Spike Lee
(EUA, 2006)
por Eduardo Valente

De tempos em tempos surge na frente do crítico um destes filmes que parece um verdadeiro edifício de Gaudi: ao mesmo tempo que perfeito na forma, único; ao mesmo tempo que de uma beleza estonteante, difícil sequer de entender como pode ter sido construído. Este mais recente filme de Spike Lee certamente é uma dessas obras, frente as quais há que se parar e ponderar muito antes de se escolher um caminho. Entre outras coisas pela consciência que temos, ao olharmos para ele, que há caminhos demais a seguir.

Num segundo, parece apetitoso tentar contrastar e contextualizar o filme dentro da obra do diretor (em si já bastante desafiadora, e a cada filme acentuando isso), buscando nele as matrizes temáticas e figuras de estilo que caracterizam o cinema de Lee, reparando quais novos caminhos ele aponta e quais velhos caminhos ele trilha de maneira singular aqui. Num outro momento, parece impossível se fugir da análise do filme pelos seus aspectos visuais, e especialmente sua inserção dentro de uma tradição do cinema de gênero, a qual Spike Lee honra e subverte a todo momento (um passo fascinante neste sentido é dado pelo belíssimo texto de Tatiana Monassa na Contracampo – dos mais completos que o filme pode receber). Em qualquer caminho que se opte seguir, no entanto, há a consciência total dos inúmeros que se deixou de desbravar, e se este texto começa assim é menos para se escusar de suas incompletudes e mais para deixar às claras o dilema do escritor para digitar um primeiro parágrafo sobre ele. Enfrentemos, porém, o desafio.

Como em todo grande cineasta, os filmes de Spike Lee pedem atenção aos mínimos detalhes, do primeiro ao último plano – ou melhor, até mesmo antes daquele e depois deste. Sim, porque entre o logotipo da Universal que abre a projeção do filme, e o logotipo da empresa produtora de Spike (40 Acres and a Mule – aquilo que era dado aos escravos após o fim da escravidão nos EUA) que o encerra após os créditos finais há um jogo dialético se dando no papel que Spike Lee representa com este filme – e que é muito próximo da sua narrativa. Seja na insipiente trilha étnico-funkeada que já serve de fundo ao sisudo logo do grande estúdio, ou principalmente na frase que aparece sendo escrita sobre o logo da empresa de Spike (“by any means necessary” – “da maneira que seja preciso”), o que nós vemos no filme todo é o diretor realizando aqui um dos grandes golpes de “contrabandista” (expressão usada para definir cineastas que se aproveitavam dos meios de produção dos grandes estúdios para servirem a seus fins e mensagens próprios, “escondidas” no meio de narrativas tradicionais).

Para começar a desvendar este golpe, vale pegar mais atentamente o sentido do título original: “inside man” é uma expressão que se refere, em duplo sentido, ao estado de Dalton Russell, o personagem de Clive Owen no filme (tanto por estar dentro do banco, mas também por operar por dentro das informações que os outros desconhecem). Por outro lado, parece muito mais adequada para caracterizar a situação do próprio diretor no leme desta produção – uma vez que o sentido clássico do “inside man” é o do “homem infiltrado”, o que o personagem de Owen, no sentido estrito, não é (todos sabem que ele é um assaltante). O verdadeiro “inside man” aqui, duplamente escondido (pela trama do filme e no jogo do cinemão) é Spike Lee.

Uma vez que, à maneira de Dalton Russell, desvendamos o “quem” (Spike Lee), o “onde” (o filme) e o “porquê” (fazer um filme segundo seus interesses com o alcance de público do cinema dos grandes estúdios), só nos falta também o “como”. E, assim como nos diz Russell, é aí que está toda a intriga. Se Russell monta um intrincado teatro visual para simular o que não é o seu interesse principal (e a montagem deste teatro, e suas implicações, é incrivelmente bem demonstrada no texto já citado de Tatiana Monassa), o mesmo faz Spike, com igual sucesso.

Primeiro com uma trama cinematográfica irretocável – seja no quesito da escritura do roteiro, seja na forma com que é filmada (e aqui vale um destaque mais que merecido para todo o “invisível” elenco de apoio do filme, que não por acaso é apresentado, um a um, no final do filme), e finalmente em como está amarrada pela montagem. Spike parece especialmente solto, brincando de filmar, colocando pequenas piscadelas de discussões em cada pequeno momento (como a decisão de sempre filmar as cenas violentas sem ser direto – o espancamento pelo vidro do banco, a “execução” pelo vídeo, etc), dando atenção extremada a detalhes que fazem toda a diferença no delicado jogo entre dar vida própria ao universo que coloca em cena (ver as caracterizações do marido e ex-mulher armênios) e se referir constantemente ao universo do cinema policial (onde são suculentas as inserções do sidekick de Denzel Washington e do seu chefe, por exemplo).

No entanto, há um segundo e muito mais sutil jogo de enganação colocado por Spike, e que muitas pessoas tomaram como o primeiro sentido do filme (quando me parecem claramente estudadas como uma segunda bateria de “fumaça”): o de retomar todo um universo de “questões típicas” de Spike Lee. Assim, lá estão as tensões étnicas sempre à beira de explodir num caldeirão fervente (notar em especial a construção da seqüência dentro do banco, antes da entrada dos bandidos), a Nova York pós-11 de setembro em primeiríssimo plano (entre o trauma e o orgulho ferido), e todo um estudo de costumes da sociedade negra americana (detalhes das relações de Denzel Washington com a namorada e o cunhado, o jogo eletrônico do menino – e seu vocabulário, até mesmo o toque do celular do funcionário do banco branco com um hip hop “fora de lugar”). Até mesmo o plano-assinatura de Spike surge, com a corrida de Washington para o banco onde ele parece flutuar sobre a terra. Tudo parece estar lá para que os críticos mais apressados parem diante desta segunda bateria, e se dêem por satisfeitos em acharem o “Spike Lee no cinemão” – num esquisito jogo de “Onde está Spike”, que alguns críticos sempre parecem querer jogar com os traços estilísticos dos cineastas.

Por detrás dessas distrações chamativas, Spike parece ter conseguido esconder alguns detalhes que, a meu ver, são os cruciais para o filme. Entre eles, talvez o principal seja os planos imponentes das estátuas nos edifícios dos bancos novaiorquinos e o touro da bolsa, que aparecem em destaque nos créditos iniciais, nos indicando desde bem cedo que o verdadeiro jogo do filme não será mais que o de pequenos seres frente uma institucionalizada situação inflexível e impassível aos dramas de cada um (mesmo os do banqueiro, que pode até ser preso, mas não mexe no sistema). Logo depois, enquanto os assaltantes fazem seu trajeto da periferia de Manhattan ao seu centro financeiro (marcado pelo filme com detalhes), surge um outro plano precioso: o close na placa que indica o cruzamento entre Wall Street e Broadway, simbolizando que o verdadeiro drama do filme se dá ali onde o mundo financeiro e o do entretenimento se cruzam, ali onde seus interesses se somam.

Neste sentido é que, quando Spike dá o passo inesperado dentro das regras deste gênero onde o conflito sempre é entre policial e assaltante (ambos peças de tabuleiro), e coloca como personagens o banqueiro (e sua história) e a lobista e o mundo político, ele deixa bem claro (mesmo que por trás de todas as suas cortinas de fumaça) o que realmente importa no jogo que ele se dispôs a jogar: que, se ele está a serviço dos grandes estúdios, que são hoje conglomerados irmãos das instituições financeiras, é porque só ali dentro, “enfiando o pé lá dentro na bunda do chefão” (como diz o sidekick para Denzel, no plano mais revelador de uma “alegria” no filme) se pode hoje fazer alguma diferença.

Assim, quando a trama em si parece já terminada, nas conversas de Washington (herói positivo, mas nem por isso tolo – que aceita sua promoção e os diamantes porque sabe que o mundo hoje não permite mais moralismos canhestros) com Arthur Case, e principalmente na sua sentada na mesa do prefeito e da lobista (“quando há sangue nas ruas, compre propriedade”) é que Spike dá o seu xeque-mate. Sempre com a mesma sutileza (nada sutil) de quem filma um plano de ipod reproduzindo um discurso do mais radical ditador comunista, parece continuar nos gritando seu “Wake up!” Esta era a mensagem de Spike nos anos 80. E continua sendo.

By any means necessary. Sho` nuff. Ya dig?

 


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